quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Os 300 de Frank Miller


O ano era 1999. As vendas dos quadrinhos de super-heróis da Editora Abril estavam cada vez mais baixas. Entre muitas outras táticas, a editora decidiu apelar para um nome que garantia vendas: Frank Miller.

Com isso, foram anunciadas (mesmo que nem todas tenham sido de fato lançadas) diversas mini-séries com trabalhos do roteirista e desenhista, algumas inéditas e outras apenas republicações. Uma das inéditas tinha sido publicada nos Estados Unidos no ano anterior, pela Dark Horse Comics. Tratava-se de 300, que pela Abril recebeu o nome Os 300 de Esparta e foi publicada em cinco edições quinzenais.

Miller, mesmo antes de 300, havia sido pioneiro de várias maneiras. Adotou uma abordagem mais pesada e violenta em HQs de super-heróis como Demolidor e Batman, adaptou o modo japonês de contar histórias ao mercado americano e conseguiu alcançar sucesso mesmo fora das grandes Marvel e DC, primeiro com Sin City e depois com várias outras obras, com destaque para 300.

Qualquer um que tenha lido os materiais mais antigos de Miller percebe que ele sempre teve uma grande paixão pela cultura oriental, usando e abusando de fatos históricos, culturais e do próprio modo de contar histórias deste povo. Mas, olhando mais atentamente, já era possível notar ao menos alguma curiosidade pela história dos 300 de Esparta, já que o roteirista por diversas vezes a citou em suas HQs.

O ano era 1999. As vendas dos quadrinhos de super-heróis da Editora Abril estavam cada vez mais baixas. Entre muitas outras táticas, a editora decidiu apelar para um nome que garantia vendas: Frank Miller.

Com isso, foram anunciadas (mesmo que nem todas tenham sido de fato lançadas) diversas mini-séries com trabalhos do roteirista e desenhista, algumas inéditas e outras apenas republicações. Uma das inéditas tinha sido publicada nos Estados Unidos no ano anterior, pela Dark Horse Comics. Tratava-se de 300, que pela Abril recebeu o nome Os 300 de Esparta e foi publicada em cinco edições quinzenais.

Miller, mesmo antes de 300, havia sido pioneiro de várias maneiras. Adotou uma abordagem mais pesada e violenta em HQs de super-heróis como Demolidor e Batman, adaptou o modo japonês de contar histórias ao mercado americano e conseguiu alcançar sucesso mesmo fora das grandes Marvel e DC, primeiro com Sin City e depois com várias outras obras, com destaque para 300.

Qualquer um que tenha lido os materiais mais antigos de Miller percebe que ele sempre teve uma grande paixão pela cultura oriental, usando e abusando de fatos históricos, culturais e do próprio modo de contar histórias deste povo. Mas, olhando mais atentamente, já era possível notar ao menos alguma curiosidade pela história dos 300 de Esparta, já que o roteirista por diversas vezes a citou em suas HQs.

Ao contrário do que faz hoje, Frank Miller se esforçou bastante em 300, estudando, usando referências fotográficas, e o resultado é um dos melhores trabalhos de sua carreira. Curiosamente, na época de seu lançamento nos Estados Unidos, a obra chamou alguma atenção, mas foi somente alguns poucos anos depois que foi reconhecida como a grande obra que é. No Brasil a coisa pareceu pior no período, pois os quadrinhos se encontravam em decadência, com muitos leitores perdendo o interesse.

Talvez justamente por causa dessa recepção morna da época, 300 tenha demorado tanto tempo para ser relançada em nosso país. Mas a espera parece ter valido a pena. Afinal, os 300 de Miller chegam tanto num ótimo filme para os cinemas, quanto numa edição em quadrinhos que valoriza ainda mais a arte de Miller bem como as cores tão bem selecionadas e aplicadas por Lynn Varley.

O que realmente importa é que 300 (ou Os 300 de Esparta) é um dos melhores exemplos da capacidade de Miller quando inspirado, sendo provavelmente sua última grande obra. Se hoje em dia seu traço está relaxado, seus personagens arrogantes e parecidos demais entre si e as histórias não têm razão de ser, quando fez 300 ele caprichou no lápis (ressaltando de novo a bela colaboração das cores de Lynn Varley, na época ainda esposa de Miller) e fez a violência e os tipos machões trabalharem em prol da trama, não sendo simplesmente sua marca registrada, mas algo vital para o andamento de um grande épico.

Entrevista Enfil


“O humor que vale para mim é aquele que dá um soco no fígado de quem oprime". – Henfil.

Em 1964, acontecia o golpe militar no Brasil. O General Castelo Branco assumiu a presidência da República e, nos anos subseqüentes, o país assistiu a prisões irregulares de líderes tidos como subversivos, dissolução de partidos políticos, eleições indiretas, censura, tortura, e um regime autoritário e repressor. A política econômica do período causou grande tensão social. O chamado “milagre econômico” trouxe um crescimento mensurável, mas por outro lado piorou a desigualdade sócio-econômica, agravando a concentração de renda e pobreza no país. A imprensa era amplamente censurada, porém a resistência, na forma de críticas disfarçadas e mensagens cifradas, fundamentadas freqüentemente no humor, ganharam terreno, protestando contra a repressão, a dívida externa, a tortura, lutando por anistia e direitos humanos.


E agora, você deve estar aí se perguntado o porquê dessa aula de história brasileira em uma matéria sobre quadrinhos. Simples. Porque vamos falar de Henrique de Souza Filho, ou, como era mais conhecido, Henfil. Criador de personagens inesquecíveis como Graúna, os Fradinhos, o Bode Francisco Orelana e Capitão Zeferino, Henfil usou do humor e da ironia para combater a censura, a desigualdade social e a corrupção nos anos que a ditadura militar se instaurou no país.


:: Uma breve história no tempo
Desenhista, jornalista e escritor, Henfil nasceu dia 5 de fevereiro de 1944, em Ribeirão das Neves, em Minas Gerais. O engajamento político era um traço de família. Seu irmão, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, foi o artífice da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria. Nos anos 60, durante a perseguição empreendida pela ditadura, Betinho passou alguns anos foragido do Brasil, episódio mencionado na música Bêbado e Equilibrista, do compositor Aldir Blanc. Tanto Betinho quanto Henfil eram hemofílicos. Em 1988, com 43 anos, Henfil morreu, após anos de luta contra a hemofilia e a AIDS, que contraiu durante uma transfusão de sangue feita em um hospital público. O violinista Chico Mário, outro irmão de Henfil, também hemofílico, faleceu no mesmo ano com 40 anos. O sociólogo Betinho faleceu nove anos depois, em 1997, com 61 anos.

Henfil começou sua carreira aos 20 anos, como revisor na revista Alterosa, em Belo Horizonte. O editor da revista, Roberto Drummond, um dia o surpreendeu desenhando durante o serviço. Reconhecendo o valor dos desenhos, Drummond contratou Henfil como cartunista e batizou-o com o apelido pelo qual se tornou conhecido, “Hen” de Henrique e “Fil” de Filho. Assim nasciam os Fradins, Baixim e Cumprido, dois frades dominicanos, o segundo ingênuo e bom, o primeiro sarcástico e cruel. Os Fradins serviam de meio para que Henfil criticasse o ensino religioso tradicional e problemas sociais e políticos da época.

Em 1966, ainda em Minas, lançou o livro Hiroshima, Meu Humor, com uma coletânea de cartuns. Posteriormente, Henfil se mudou para o Rio de Janeiro e começou a fazer charges para o Jornal dos Sports. Foi lá que surgiram personagens como o Urubu (que virou símbolo da torcida do time do Flamengo), Cri-Cri, Pó de Arroz e o Gato Pingado.

Foi em 1969 que passou a colaborar no Pasquim, tablóide onde nomes como Jaguar, Tarso de Castro, Ziraldo, Millôr, Paulo Francis, Chico Buarque, Ruy Guerra, Ferreira Gullar, Fernando Veríssimo e tantos outros colaboraram. Na época, os atos institucionais, a nova Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional contribuíam para aumentar a censura e a repressão. A proposta do Pasquim era criticar esse cenário, um grupo de jornalistas e profissionais da mídia que se reuniu para falar mal do governo, em pleno AI-5. Nos seus anos de funcionamento, o Pasquim reuniu a nata dos intelectuais e boêmios cariocas. Era fortemente censurado, principalmente as tiras de Henfil, que havia chamado a atenção do governo.

Foi no Pasquim que Henfil tornou-se conhecido em todo o país. Na mesma época, torna-se colaborador do Jornal do Brasil, onde ficam famosos seus personagens da caatinga, Graúna, Bode Orelana e Zeferino. Em 1971 lança o Almanaque dos Fradinhos, publicação mensal pela editora Codecri, criada juntamente com Millôr Fernandes, Ziraldo e Sérgio Porto. Seus personagens então atingiram um nível de popularidade jamais experimentado no Brasil.

Em outubro de 1973, o cartunista foi para Nova Iorque, para fugir da pressão da censura e também para tratar da hemofilia. Lá, conseguiu publicar seus personagens, os Fradinhos, rebatizados de Mad Monks, em vários jornais norte-americanos, através de um distribuidor, o Universal Press Syndicate (UPS). Cerca de 200 jornais, de costa a costa, publicaram as tiras de Henfil, incluindo 10 dos maiores em circulação. Entretanto, o público começou a reclamar que o quadrinho era pesado demais e o acordo com o distribuidor foi cancelado. Dessa maneira, e sem conseguir um tratamento satisfatório para a hemofilia, Henfil retornou ao Brasil em 1975. Sua estadia nos EUA virou o livro Diário de um Cucaracha.

Em 1977, Henfil começou a colaborar com a revista Isto É. Cartas da Mãe eram mensagens endereçadas à sua mãe, Dona Maria, através das quais Henfil burlava a censura, tratando de temas como exilados políticos e anistia, e criticando o governo. Depois mudou-se para São Paulo, onde participou de várias campanhas do movimento sindical e colaborou no João Ferrador, jornal do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo.

No início da década de 80, publicou os livros Henfil na China e Antes da Coca-Cola. Trabalhou ainda no teatro – realizou a peça A Revista do Henfil, em co-autoria com Oswaldo Gabus Mendes – e na televisão, no programa TV Mulher da Rede Globo, onde escrevia e apresentava o quadro TV Homem. Em 1984 escreveu, dirigiu e trabalhou como ator no filme Tanga - Deu no New York Times.


:: Alguns personagens de destaque
A caatinga
Em plena época do milagre econômico, Henfil se utilizou de três personagens para denunciar as disparidades entre norte e sul do país. Em 1970, o Ato Institucional nº 5 estava em pleno vigor, e as charges eram publicadas pelo Jornal do Brasil. Zeferino era o típico sertanejo, com um visual que lembrava o cangaceiro. O bode Francisco Orelana representava o intelectual acomodado, simbolicamente devorando livros, porém sem nunca realmente tomar uma atitude. A Graúna, seu personagem de maior sucesso junto ao público, é uma avezinha miúda, ingênua e otimista, em cuja perspectiva quase infantil do mundo repousava a maior parte da crítica contundente da charge.

A Turma da Caatinga serve de crítica ao racismo, à pobreza e concentração de renda, aos monopólios, aos latifúndios, à compra de votos, à demagogia política, à SUDENE, entre outras tantas mais.

Os Fradins
Os Fradins são inspirados em dois frades dominicanos. Um alto e magro, ingênuo e alienado. O outro, mais mordaz, baixinho, gordinho, que vivia aprontando, principalmente com o frade mais alto. Os frades Cumprido e Baixim são dois opostos que se complementam. Enquanto o primeiro é temente a Deus, submisso e inocente, o segundo é um sádico de boca suja que não teme nada, nem ninguém.

Note-se, contudo, que o Cumprido reflete a hipocrisia da sociedade, mantendo uma atitude passiva face aos males sociais, sempre se culpando por tudo, mas sem fazer nada para mudar a situação. Já o Baixim reflete a realidade de forma extrema, mas sem ser hipócrita. Ele só e capaz de fazer alguma coisa boa se tiver a certeza de que ninguém está olhando.

A dupla foi a ferramenta de Henfil para criticar a ditadura, satirizando políticos e evidenciando a hipocrisia e os preconceitos da sociedade brasileira conservadora e moralista da época.

Ubaldo, o paranóico
O personagem Ubaldo é uma criação conjunta do humorista com o crítico musical Tárik de Souza. Foi criado em 1975, em plena vigência do governo do General Ernesto Geisel. Uma semana antes, o jornalista Wladimir Herzog morria nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo.

Nos anos seguintes, o Brasil passaria pela chamada Abertura Política, processo lento e gradual de redemocratização, com a diminuição da censura e o começo do movimento pelas eleições diretas. Ubaldo é a encarnação do temor de Henfil – e de muitos brasileiros – de que o regime de terror voltasse a imperar. De cabelos grandes e bigode, o estereótipo da juventude engajada do início dos anos 80, Ubaldo retrata a dualidade da sociedade de então, dividida entre o medo da repressão e a euforia diante do processo lento e gradual de abertura política.

Ubaldo espelha o medo de ser preso, de desaparecer, de ser torturado ou morto. É Henfil mais uma vez fazendo humor em cima da tragédia. Talvez Ubaldo seja seu personagem que mais tenha ficado datado. Ou não. A ditadura terminou, mas ainda vivemos uma realidade que nos deixa inseguros e amedrontados de sair à rua.


:: Humor com propósito
Henfil é a prova de que bastam boas idéias para criar quadrinhos. Ironia, revolta, acidez, e crítica política eram representadas basicamente por expressões faciais e movimento. O traço de Henfil era praticamente um rabisco, seus quadrinhos fugiam totalmente dos moldes tradicionais das tiras de humor da época. Nada de personagens que pareciam bonecos, com poses e expressões padronizadas. Na arte de Henfil não há construções geométricas, não há detalhes, não há volumes, não há arte-final e não raro não há nem mesmo cenário ou enquadramento.

Em uma época em que predominavam os quadrinhos de super-heróis importados, ele ousou ser diferente. De fato, pode-se afirmar que ele fez tudo ao contrário do que se fazia na época (e até mesmo hoje em dia), e ainda assim, com muito humor e senso crítico, conquistou um público fiel e renome nacional.

Um exemplo de como o humor pode servir de veículo para a denúncia, de que os quadrinhos são meio de expressão para quem tem a incapacidade de assistir impassível à injustiça.

Suas tiras são publicadas atualmente em grandes jornais do país, como o jornal O Globo (que sempre se recusou a publicá-las, na época em que foram escritas), e seu valor intrínseco continua tão atual quanto na época de sua criação. Parecem às vezes que foram feitas ontem.

Olhe para Dentro de si

Quando você achar que está num beco sem saída e na beira de um abismo pensando que os seus problemas são maiores do que os dos outros…
Lembre-se de quantas vidas são perdidas nas guerras santas lá do oriente médio e das guerras urbanas que você presencia todo instante e se quer consegue entender porque de tanta injustiça.
Lembre-se dos corpos inocentes sendo mutilados pelas máquinas e pelas armas, sem justa causa ou razão nessas guerras, por estarem indefesos diante do poder de fogo do inimigo e da ganância e arrogância dos homens poderosos que se encontram escondidos atrás das suas próprias ambições.
Lembre-se da fome e da cede que afeta regiões de certos países, e nós, como verdadeiros cristãos, não fazemos nada para saciar tal necessidade e nem movemos uma palha para mudar a vida desses infelizes.
Lembre-se das nossas crianças e dos nossos velhos jogados nas calçadas da vida sem terem onde dormir… sem terem um lugar para se alimentar ao cair de uma longa e fria noite de intenso inverno.
Lembre-se de que no mundo existem milhões de pessoas enfermas e em estado terminal esperando apenas pela morte, mas mesmo assim, elas se sentem felizes por estar desfrutando do pouco tempo de vida que ainda lhes restam.
Lembre-se de que você deve estar sempre feliz para poder transmitir uma palavra ou fazer um gesto de solidariedade para quem está necessitando da paz de espírito para sair de uma situação difícil, ou mesmo de uma prisão emocional.
Lembre-se de que você não é a única ou o único ser humano a ter problemas, e, que esses problemas nada mais são do que uma grande fonte de lição para fortalecer o seu espírito quando se encontrar perdido ou perdida no meio das suas próprias causas e razões.
Levanta a cabeça e analise seus problemas encima dessas questões.
Você já se imaginou numa dessas situações ?
Seus problemas jamais serão obstáculos, pois, sua sabedoria e sua inteligência vai lhe dar as respostas das suas perguntas e as soluções para sua maior dificuldade quando estiver perdido ou perdida no meio dos seus pensamentos, ou quando se encontrar num beco sem saída, ou na beira de um precipício esperando por apenas um pequeno empurrão para se livrar da dor e do sofrimento que você mesmo causou para sua vida.
Pense nisso..

Compartilhe essa mensagem!

O Pedreiro

Um velho pedreiro estava para se aposentar. Ele contou ao seu patrão seus planos de largar o serviço de carpintaria e de construção de casas e viver uma vida mais calma com sua família.
Claro que ele sentiria falta do pagamento mensal, mas ele necessitava da aposentadoria.
O dono da empresa sentiu em saber que perderia um de seus melhores empregados e pediu a ele que construísse uma última casa como um favor especial.
O pedreiro consentiu, mas com o tempo era fácil ver que seus pensamentos e seu coração não estavam no trabalho. Ele não se empenhou no serviço e se utilizou de mão-de-obra e matérias-primas de qualidade inferior.
Foi uma maneira lamentável de encerrar sua carreira.
Quando o pedreiro terminou seu trabalho, o construtor veio inspecionar a casa e entregou a chave da porta ao pedreiro. "Esta é a sua casa", ele disse, "meu presente para você"
Que choque! Que vergonha! Se ele soubesse que estava construindo sua própria casa, teria feito completamente diferente, não teria sido tão relaxado.
Agora ele teria de morar em uma casa feita de qualquer maneira.
Assim acontece conosco. Nós construímos nossas vidas de maneira distraida, reagindo mais que agindo, desejando colocar menos do que o melhor.
Nos assuntos importantes nós não empenhamos nosso melhor esforço. Então, em choque, nós olhamos para a situação que criamos e vemos que estamos morando na casa que construímos. Se soubéssemos disso, teríamos feito diferente.
Pense em você como o pedreiro. Pense sobre sua casa. Cada dia você martela um prego novo, coloca uma armação ou levanta uma parede.
Construa sabiamente.
É a única vida que você construíra. Mesmo que você tenha somente mais um dia de vida, este dia merece ser vivido graciosamente e com dignidade.
A placa na parede está escrito: "A vida é um projeto, faça você mesmo."
Quem poderia dizer isso mais claramente?
Sua vida de hoje é o resultado de suas atitudes e escolhas feitas no passado.
Sua vida de amanhã será o resultado de suas atitudes e escolhas que fizer HOJE!!!

PARA TER ALGO QUE VOCÊ NUNCA TEVE, PRECISA FAZER ALGO QUE NUNCA FEZ.



Desconheço o autor, mas o parabenizo fortemente. Ele certamente sabia que somos reféns de nossos valores, pensamentos e atitudes. Querer algo novo é preciso; por mais paradoxal que possa parecer, é necessário inovar.
Conheço pessoas que querem muito realizar a sua mudança, mas se sentem incapazes de tomar a atitude que as levaria à sua tão sonhada realização.

Muitos são reféns do que lhes foi imposto ao longo de sua vida pelos que os cercam... Mulheres reféns de maridos. Filhos reféns dos pais. Homens totalmente submissos às suas mulheres. Subordinados cansados de seus chefes e do que fazem. Profissionais que cursaram a Universidade só para agradar as famílias e jamais a eles próprios. Médicos que fizeram medicina por ser uma profissão rentável e se esquecem que medicina é uma profissão que mais exige desprendimento material.
Enfim, nos dias de hoje, é comum encontrarmos pessoas infelizes por conta da maneira como vivem. Todas buscam os culpados e eu fico pensando: será que não se olham no espelho?
Eu sou o espelho de minhas atitudes. Se não estão adequadas, cabe a mim a decisão de mudar. Se quiser uma empresa nova também preciso exercitar o novo. Enfim, sou o que sou. Mas, se não estou satisfeito, eu tenho que ir à luta...

Muito se fala, se escreve e se aponta sobre a força do pensamento positivo.
Da maneira como devo encarar as minhas verdades e o que fazer com elas. Tudo isso é fundamental para nossas colheitas futuras.
Porém, todas as vezes que negligenciamos as nossas verdades somos penalizados com pigarros, labirintite, dores de garganta e mais um sem número de outros problemas de saúde...
É preciso termos ciência, sempre, de que a doença foi causada por nós. Nós somos os agentes dela, mesmo que os vetores sejam externos à nossa vontade. De alguma maneira permitimos... Aceitamos as imposições de terceiros em nossas vidas. Isso causa sofrimento. Portanto, ser saudável depende de nossas atitudes e quando ficamos doentes não é por causa da genética.

Portanto, o combustível da mudança é a nossa vontade. O veículo, o pensamento. Sem a vontade, o nosso carro não anda. Precisamos colocar nele esta ação cósmica para que ela se torne determinação. Por isso, insisto em afirmar que quem souber, mas não aplicar o conhecimento, nunca ficará sábio.
Assim, com pensamentos adequados à nossa evolução e a vontade para os executarmos, deixaremos de estacionar numa eventual zona de conforto para empreendermos a busca daquilo que nunca tivemos.
Estamos vivendo uma fase muito importante em nossas vidas para colocarmos a nossa VONTADE de mudar em teste. Foram vários os e-mails que recebi dando testemunho de que as pessoas estão efetivamente vivendo o momento da mudança.

Nossas mãos não resolvem todos os problemas do mundo, mas dão encaminhamento à solução das nossas amarguras, angústias e dificuldades, desde que tenhamos vontade para tal.
Coloquemos, portanto, nossa vontade a favor de nossa determinação. Só ela cria uma intenção impecavelmente dirigida...

O Feitiço da Terra

O sol, sumindo-se na barra do horizonte, incendiava ainda a cúpula do Teatro Amazonas, num último arranque de heroísmo, lançando ao longe a sua tocha acesa. Visto assim, do rio, a maravilhosa arquitetura do prédio, parecia arder nas chamas de um incêndio que espalhava-se à sua volta. Nada é mais curto do que a crepúsculo equatorial. O sol, feito um guerreiro cansado, some-se pela linha azulada do horizonte, nos últimos lampejos de uma derrota sangrenta. Chega a sombra, triunfante, arrebanhando todo o espaço visível, abrangendo qual tal um polvo, com seus tentáculos, macios e silenciosos, a terra que se entrega muda. Nas águas fartas e volumosas do Rio Negro, brilham  os lampejos do crepúsculo agonizante, pareceu-me ver a pontuação vermelhada das luzes do cais flutuante, deslizando para dentro d’água, como lágrimas de uma cidade incrustada no meio da floresta, que a intimida. É a cidade que chora, com saudade do dia. A imensa massa líquida, eleva-se, as ondas se chocam contra a embarcação, embalando-a suavemente. Nessa hora de elevação da natureza, rio parece avolumar, assemelha-se a um peito que palpita uma vasta e incontida emoção. Por essa imensa estrada líquida, nessas águas eternamente agitadas e místicas, sulcadas de embarcações que mal parecem ferir-lhe a superfície, Henrique se admirava diante da beleza do por do sol. Tudo mais adquire um leveza irreal. Só a água pesa, só ela se movimenta, só ela existe. Nela circula a seiva da vida, o sangue da floresta. Tudo em volta é mistério, é esse mistério escondido, que fascina aquele estrangeiro. Há entre o rio e o céu, uma troca silenciosa, Desce do alto a paz e sobe da água a tristeza das mágoas humanas. A noite se espalha pela terra, as estrelas aos poucos vão surgindo, aqui e ali, relampeando nas suas mais diversas formas, os pássaros juntam-se, para esperar que a treva passe e o dia ressurja novamente, trazendo uma nova esperança de vida, de movimento. Na terra tudo dorme, tudo descansa.
         Em volta do barco, a água tocada pela grande roda de proa em movimento, vai rangendo animadamente. As luzes do grande barco, assemelham-se a um grande bando de vaga-lumes, que vagam noite afora, deixando uma esteira dourada, nas águas escuras e silenciosas do Negro. Dentro, as vozes se multiplicavam, quebrando aos poucos o silêncio da noite, uma mistura de sotaques, trazia de volta a vida, o visitante que se perdia em pensamentos, diante da beleza incontável da natureza em sua exuberância máxima. Um vai e vem descontrolado de pessoas diversas, de raças diferentes, de línguas e dialetos, interesses diferentes, ambições desencontradas. Tudo isso vai terminar, tal qual uma onda, de encontro às tábuas do paredão do cais. Henrique vai debruçado na amurada do convés, os olhos voltados para as luzes da cidade, que aos poucos se distanciam, vão desaparecendo ao longe. Lá vai ficando Manaus, lá vai ficando Esthela... Teria saudades? Era curioso, mas ainda não as sentia, quem sabe mais tarde, essa dor, doeria...
         Mas a noite engoliu tudo, arrebanhou-lhe o espírito e as lembranças, vai deslizando com ele, rio a fora, aumentando  a distância entre ele e a esposa. Tudo que ele tem de mais caro.
         É uma constatação que o escandaliza, essa, de se sentir firme sozinho, de aceitar a solidão como um gozo, uma carícia, de sentir que quanto mais se distancia, mais cresce, continua, avança.
         Os sons vindos da terceira classe, não o atraem, ele está envolto em uma espécie de capa protetora, a solidão na amurada, ainda o prendem a um breve passado, Esthela não lhe sai do pensamento, mas as cenas que se desenrolam em sua frente, enchem-no de expectativa. Quer a solidão, quer o silêncio e o mistério das águas escuras e revoltas, que se abatem junto a amurada. Quer seguir como uma seta, perfurando o destino, o futuro, dentro daquela noite  que o cobre, como uma redoma de vidro fume. Vislumbra qualquer coisa dos dias que virão, sabe-se enganado pelas tolices da vida, pelas armadilhas urdidas diariamente pelo destino, mas mesmo assim segue em frente.
         Pressente as alegrias e tristezas que o esperam, nessa longínqua área de exploração, que separam oito dias de viagem, rio acima. Revê-se preparando tudo, às pressas, após a resolução, aparentemente tomada de supetão, mas, na realidade, vagarosamente amadurecida dentro do seu espírito aventureiro. Todo a seu ser  jogava nesse empreendimento, o convite recebido no dia anterior, vindo do IBAMA, convidando-o a participar de uma equipe de estudos, que lotada na selva, realizava experiências junto a rica flora da região, fê-lo decidir-se de imediato. Havia muito que vinha pensando naquilo, seu maior sonho seria trabalhar no IBAMA, e agora, com essa oferta... Estava cansado, farto da vida cotidiana que levava. Já nem a doce presença de sua esposa, conseguia empolgar-lhe o espírito, sentia que precisava de uma mudança radical de cenários, desde que deixará o Paraná, em busca de futuro no Norte, ansiava por tal oportunidade, mesmo depois de se instalar na grande Manaus, ele esperava por aquele momento. Seu espírito aventureiro ansiava por empreitadas como aquela.
         Trabalhando no IBAMA como operador de Micro, aos poucos ele estava se tornando indispensável ao grande grupo de biólogos, cientistas e estudiosos, que por ali passavam.
         A vida para ele, estava como um carrossel, sempre girando no mesmo lugar. Era preciso largueza de horizontes, os seus insistentes pedidos à Direção, acabaram surtindo o efeito esperado, depois de alguns meses de ininterrupta insistência, o Diretor de campo Gonzaga, solicita a sua presença, na área de pesquisa.
         Bom Futuro! Que vontade o assoberbara de conhecer a área de pesquisas Bom Futuro, ele queria conhecê-la de perto! Com que ânsia ele aguardou a carta de Gonzaga, autorizando-o a deixar a central, para seguir ao Bom Futuro, por  vezes, recebeu em sua casa o amigo Rodolfo, ele é que lhe punha na cabeça, a vontade de deixar a cidade e sair em busca de emoções, a floresta estava cheia delas, mas a consciência o impedia, não poderia jamais largar tudo e seguir a sua vontade, mas agora era diferente, estava a trabalho.
         As cartas que recebia do amigo Rodolfo, vinham descritas minuciosamente as cenas diárias, os acontecimentos cotidianos, tão simples na aparência, porém tão cheias de significado, para Henrique. Ah! Como se sentia atraído pelo lugar, para aqueles segredos, para aqueles perigos que o atraíam e o ameaçavam, mesmo de longe! Rodolfo, passara a ter uma vida quase irreal. Era quase um símbolo. Comparando-se ao amigo, compreendia estar vivendo exclusivamente para o dever. Os caminhos da terra vibravam de impaciência, para serem percorridos pelo homem, e ele nada...
         Henrique debruçado na amurada, repassava tudo isso em sua mente, “As águas se agitam, na esperança de serem sulcadas pelos navios, o homem recebeu pernas para caminhar e correr por entre as trilhas da terra...” Essa coisa de ficar sempre preso às mulheres...
         No íntimo sentia que tinha certa prevenção contra a Esthela, por vezes ele se pegou falando uma coisa e sentindo outra, notou que isso também se passava com ela, não foram poucas as vezes que ele a surpreendeu no ato, os dois pareciam usar uma máscara, um diante do outro, na verdade, nenhum dos dois deixava transparecer o que realmente sentiam, seus medos, suas angústias, seu desejos...
         Entretanto ela era tão boa! Amava-a tanto. Porque havia esse desajustamento? Porque, querendo-a tanto, tinha tantas queixas contra ela? Reconhecia-as injustas. Mas não podia evitar. Tudo isso porque? Tinha visto as lágrimas em seu rosto, na hora da despedida, na hora da separação, desde há muito ela andava emocionada, referia-se aos anseios de Henrique, como um falso heroísmo, uma bravata de pirata caolho e barrigudo.
         Sentira perfeitamente isso, agitara o mais profundo do seu ser. Vira-a soluçando em seu ombro. Era, afinal de contas apenas quinze dias, tão curta era a ausência, que ele não via razão para tanto choro. Mas era por pouco, estava precisando desse descanso. Havia seis meses que trabalhava feito um louco, tentava de mil maneiras, fazer com que seus esforços fossem reconhecidos, pelos seus superiores. Graças ao se conhecimento na área de informática, sua tecnologia era empregada nas mais diversas áreas de estudo e estatística do IBAMA.
         Essa pausa verde, esse contato com a mãe-terra, haveria de retemperá-lo, voltaria com novas energias, e quem sabe... uma promoção... algo parecido.
         Andava tão fatigado, sentindo-se nervoso por qualquer motivo. Para isso concorrera muito a sua partida para a Amazônia, as conseqüências que caíram sobre ele, após uma ardilosa calúnia que lhe lançaram, finalmente lhe deram ânimo para a empreitada. Nunca pudera aprovar aquilo. Era, a seu ver, mais um desastre que se abatia em sua vida. Fizera-lhe ver, aliás, tudo isso, em franca conversa, mas o professor Murilo, que o caluniara, mostrou-se obstinado. Recordava -se da cena. Ele voltado para o traidor, esgotando os recursos da sua dialética: “Você, me trair com mentiras, me indispor com a Secretaria de Educação, não papel que se preste a um professor...” “Na vida tudo é luta, a lei que impera, é do mais forte, é um direito que me reservo, não é certo?”, ripostara ele. Ao fim, terminara por encolher os ombros. Ele que fizesse o que bem entendesse. Era, afinal livre. Fosse para o Inferno! Mas a injustiça já estava feita, nada se havia à remediar. 
         O processo administrativo se instaurara. Fora preciso aceder, aceitar. Muitos de seus amigos, pareciam vibrar com tais elucidações enganosas que no decorrer do inquérito, foram apresentadas. Nada repercutiu mais, do que a sua própria vergonha, na incerteza dos amigos, na completa obscuridade da Lei, Henrique resolveu deixar o Paraná, nada mais o prendia ali, o único trauma que levava consigo, era a dor da traição.
         Saía daquilo tudo, como quem se livra dos aperreios incômodos, era com alívio que também deixava para trás, o barulho surdo dos alunos da Brasilino, o constante arrastar de carteiras, as correrias, os gritos.
         Depois que o Murilo lhe traíra, deixando-o naquela constrangida situação de preterido, viera-lhe o desejo mais forte do que nunca, de fugir, escapar, de abandonar aquele ambiente. Sabia que tinha de voltar, mas viria de cabeça erguida, novas idéias, outras disposições. ia encher os pulmões de ar puro, saturado de vida, ia buscar coragem e um novo recomeço.
         A escola, os alunos, que se arranjassem com outro, a Secretaria ainda lhe tinha oferecido o cargo de secretário, mas a vergonha e a indignação, o impediu de ficar. Esthela tinha-lhe dito: “Não vá você perder a cabeça, hem? !...” Que todos me virassem às costas, de que adiantava ganhar dinheiro, trazer para casa, pagar as contas, trabalhar feito um burro, num lugar onde ninguém valoriza os seus esforços, se tudo sumia naquele torvelinho. Se tudo era papado por aquela quantidade de gente que vivia obtendo vantagens em cima de vantagens, nas suas costas? Não, ele não tinha vocação para burro de carga! Sua resolução espantara a todos. D. Marli, a mãe de Esthela, Divairton, seu ex-marido, Nancy, a filha mais nova do casal, Vitória, sua mãe. Que direito tinham de interferir em sua vida? Se ali não tinha condições de ser feliz, procuraria o seu destino em outras paragens!
         Esthela fora fina, não se opusera, propriamente. dissera compreender a necessidade dessa mudança. Apenas de quando em quando, colocava uma pedra em meu sapato... Dizia uma ou outra frase, que deixava a mostra os seus verdadeiros sentimentos de receio.
         Ela estava sempre a se comunicar com os parentes no Paraná, escrevia-lhes toda semana, queria saber de tudo, de todos, Henrique se mantinha à margem.
         Agora depois de seis meses, enfim, seus esforços foram reconhecidos, na sua inocente mente sonhadora, ele se via de partida para a tão sonhada vida aventureira.
         Esthela demostrava à inoportunidade daquela viagem. Justamente agora, que estavam sobrecarregados de despesas, estavam recomeçando a vida, comprando móveis, construindo a casa... Era o que o seu olhar parecia acrescentar as frases. Pois era exatamente isso que o aborrecia. Queria ver-se livre, pelo menos por algum tempo, daquela canga pesada. Por alguns dias gostaria de ter a sensação da liberdade. Partiria.
         E agora sulcava as águas, só com os seus pensamentos, como queria. O Rodolfo fora avisado, esperava-o com entusiasmo. O Bom Futuro era no Purus. Aguardava-o a selva, as emoções nos verdadeiros templos de vegetação, a obscuridade dos mistérios, a conversa com o amigo, sob a luz dos lampiões. A caça, a pesca, uma canoa veloz, uma boa leitura, e quem sabe até, o início de um grande romance, se possível, vivido por ele mesmo. E a capacidade de sonhar sobre todas as coisas, longe de tudo, ouvindo a distância o ronco das feras, o canto dos pássaros, a soturna algazarra dos guaribas. Que mais queria? Ao fim de certo tempo, Esthela de novo. Afinal, era boa a vida. Completa mesmo, se não fosse essa eterna preocupação de se ganhar dinheiro! Isso é que era o Diabo! Mas para todas as suas dúvidas, Rodolfo encontrava a explicação. Sempre dizia uma palavra que dissipava as suas nuvens. Certamente o Rodolfo haveria de rir, com as suas preocupações, na verdade, Rodolfo planava acima de tudo...
         Na noite escura o barco avança, Henrique cerra os olhos, antegozando os prazeres que o aguardam. Levado por uma força nova, vai, rumo ao desconhecido.


II


         Com a luz dos dia, tudo toma um aspecto diferente. O cenário na aparência, é sempre o mesmo, conforme a luminosidade e o contraste com as sombras, ganha nova vida, novos contornos, tudo se modifica lentamente, ante os olhares atônitos da platéia. A manhã, encontrara-o de pé, louco para ver o nascer do sol, essa hora exata, em que as águas se tingem de rosa, onde a terra se confunde a uma palheta, repleta de cores e tonalidades mil, que no decorrer do dia, comporão a tela do dia. Todo esse painel, tem o seu fundo musical, ali, em meio a floresta, o canto de mil pássaros, os rugidos das feras, os silvos longos e perenes da embarcação, dão a cena um ar nostálgico, encantador.
         A frente no horizonte, as águas barrentas do rio, contrastam com o azul fumarento do céu. Tudo é cor, tudo é irreal e passageiro. O dia caminha, desfazendo efeitos, desmanchando paisagens, modificando e alterando a cada momento. Nesse momento, Henrique pensou que Deus, seria um artista insatisfeito, que as mudanças que se sucediam a cada momento, seriam mudanças expressas pela sua vontade, que ele as modificava na tela da vida, pincelando aqui e ali, com o seu poder divino.
         A cada tentativa de mudança, a paisagem aparece mais bela e diferente na sua obra, os espectadores sentem a ânsia da perfeição, a impaciência estática do absolutismo.
         Conduzindo a custo a carga heterogênea, o grande vapor pintado de azul e branco, vai empenachando o ar puro da manhã, com uma fumaça escura, que enevoa a paisagem. A limpidez do dia, porém, logo absorve toda aquela discordância.
         O vapor em cujo interior palpita uma vida intensa, leva em deprimente promiscuidade, homens e animais. Na terceira classe, onde um som rouco e ritmado de uma banda incansável, anima e enche de esperanças, os ouvintes desatentos, amontoam-se bois em cujos chifres avultam penduricalhos e enfeites mil, vacas secas e ossudas, burros verruguentos, cabras e carneiros desnutridos e até porcos, ao lado de sacos de sal, gasolina, querosene, óleo diesel, tijolos e uma interminável lista de outros produtos. Os oficiais de bordo atravessam com dificuldade por entre os grupos compactos de passageiros e cargas. Os passageiros com seus baús e trouxas e os animais com a sua ânsia de desembarque, obrigam os tripulantes, para a execução de suas manobras, fazer verdadeiras ginásticas para atravessar de um lado para o outro da embarcação. Toda essa gente come, cospe, vomita, conversa, fuma, pensa e sofre, ao som da eterna melodia da banda. As mulheres vestidas de chita, com seus curumins nos braços, discutem a moda da cidade grande, pitando os seus cachimbos de pau torto e aparando as ilustres barrigas de seus filhos. Os pobrezinhos choram pedindo bolachas, que na coberta, existem barricas repletas, um ou outro assoa o nariz melequento, no pano às costas da mãe, ali ficam os rastros de uma lesma crônica, que habita o interior nasal da maioria das crianças amazonenses. Os homens falam dos tambores de cachaça, dos galões de cagibrina. As mulheres, da variedade incomparável dos baús e das canastras carregadas. A fartura em volta e a fome ali dentro, estômagos apertados, o cuido da fome , a espreita. A vida é cara. Os nordestinos tem a cara deprimida, sempre arredios, desconfiados, o olhar sempre perdido nas margens, Henrique observa a cena ao longe e imagina o que se passa na cabeça de cada uma daquelas pessoas, que sonhos devem ter, que caminhos irão traçar?
         Vêm de terras desoladas, destruídas pela seca, o medo os acompanha, no Ceará, conheceram a dor da seca, aqui, conhecerão a dor da água, o medo é a estampa real do nordestino em terras amazonenses. Muitos deixaram lá, as suas famílias, outros ainda, trazem-na de contra peso. Ele sabe que pensam também, inconfessávelmente, nos quartos de carne que viram pendurados na ré, as mantas de carne bovina, destinada a alimentação dos passageiros da primeira e da tripulação, são devorados em pensamento, pelos famigerados nordestinos, que fogem da seca, para afogar-se no alagado.
         Alguns armaram suas redes e se alheiam do ambiente, entregam-se a doída dor da saudade, a tirania de uma dor invencível. Outros, mascam fumo, pitam no cachimbo de taquari, dando trela a imaginação, a respeito do que os espera na selva.
         No outro convés, o segundo, onde há a roda do leme, o bolinete, a despensa, o bar, a sala de refeições, a caixa da fumaça e os camarotes com acomodações  para o pessoal de classe mais elevada, estão os passageiros representantes de companhia de extrativismo mineral, os grandes madeireiros, fazendeiros de toda sorte, criadores de gado e até um criador de jacarés, os oficiais de bordo, os serviçais e sobressaindo-se ante todos, pela sua farda impecável, o comandante de bordo, um homem simpático, de olhos miúdos, enorme barriga e resposta pronta no ato, ao seu redor todos circulam, é um ondear de indagações que ele responde sempre, bem humorado.
         Naquele dia, Henrique presenciou um diálogo interessante entre um dos passageiros do Vapor e o Comandante da embarcação:
         __ Creio que temos um caso grave de varíola, comandante...
         __ Onde se encontra? , perguntou o fardado, preocupado.
         __ Na terceira, é um cearense.
         O comandante meneia a cabeça, deixando a mostra, seus dentes amarelados de caboclo, e como notou os olhares perplexos sobre si, comentou:
         __ Não se preocupem, é uma erupção branda, temos um médico a bordo, ele irá examinar o pobre coitado, tirem a preocupação da cabeça, no “Vara Rio” nunca me ocorreu uma epidemia, sequer um óbito...
         Nada a temer, pensou Henrique.
         Mas no barracão mais próximo, houve uma parada imprevista, junto a malagueta o comandante dá as ordens. As máquinas pararam e o vapor desliza, rumo a barranca.
         Na amurada os passageiros espiam curiosos, indagando aqui e ali, o motivo da parada inesperada. Alguns arriscam o palpite, de que a parada seja para descarregar os porões, que dizem estar cheios, prejudicando a embarcação no sentido de melhor singrar as águas do rio, dizem que a água está bem acima da linha de flutuação. Os cearenses da terceira, deixaram suas redes, a banda estacou em seus acordes e os ferros rangem. A fumaça inebria os olhos desacostumados, empesteando o ar, em volta dos curiosos, um caboclo que descera para amarrar o cabo, grita. O imediato, rígido, grita as ordens em voz alta, sobrepondo-se ao grande alarido formado no convés, pelos passageiros. Um grupo de curiosos aguarda no porto. Da margem perguntam para os de bordo, se há cigarros, fumo, farinha d’água, cebola, se trazem jornais...
         Mas nada disso. As ordens são severas e imperativas. Há uma troca de palavras com o senhor da terra, e um protesto se eleva categoricamente. Logo a seguir, um silêncio que encomoda a todos, um momento de hesitação. Por um momento, apenas o canto dos pássaros é ouvido, os passageiros recostados à amurada, adernam o barco levemente, as águas em derredor, carregam as cascas de laranja, cortadas em todos os feitios, de repente, os gritos do pessoal de terra começa, enorme. Não! Ali não se aceitam pessoas enfermas, que vão contagiar o Diabo que as carregue, ali não. O Comandante insiste. Dois caboclos trouxeram da terceira classe, o corpo do moribundo, envolto na rede. Ao seu lado, um cachorro, esquálido uiva incontrolávelmente desolado. O povo do porto continua com a grita, dali um pouco, outros caboclos surgem de armas em punho. As ameaças continuam, as disputas, as insistências. Um dos caboclos perde a calma e soa o primeiro tiro, será o primeiro de uma série... O comandante empalidece diante da ameaça, então dá ordens para que o enfermo seja levado de volta à terceira classe. Em poucos minutos os ferrolhos são novamente recolhidos e o vapor cobre toda a margem com a sua fumarada. Ao longe ainda se pode ouvir os tiros dados a esmo.
         No barco a hipótese de contágio, rondava a cabeça de todos, apesar do avanço da medicina, naqueles ermos não havia recursos. O comandante preocupado com o possível contágio, mandou que se instalasse no convés, uma tolda e para aí, o corpo do moribundo é transportado, sob a chuva dos olhares amedrontados e curiosos dos passageiros.
         O navio prossegue sobre as águas mansas. Tronqueiras, galhos, ilhas de capim verdejante, passam no rebojo do rio. a Banda recomeça com o seu incansável acorde e logo se ouve o compasso de uma valsa brejeira.
         Mais tarde há uma nova parada, o comandante exibe os dentes amarelados e chama atenção para si, tenta entre outras coisas, narrar os seus vinte e tantos anos, subindo e descendo por aqueles aquosos rios.
         Mas ninguém se interessa pelo relato animado, ninguém está disposto a seguir o curso de suas idéias. As fisionomias, revelam a ansiedade geral. Todos os espíritos ali presentes, atentam para a parada inesperada do vapor, então acorrem a amurada.
         Um caboclo, pendurado no mastro, olha com espanto a cena que se apresenta, o vapor estremece ante a parada, com os motores ligados, com pressa uma maca é improvisada e o corpo do virulento desce a margem. O movimento dos homens que carregam o corpo é rápido, cheio de cuidados e receios. O corpo é deixado no barranco. O doente ficará sozinho. Morto? Ainda bate aquele coração que ali vai repousar para sempre, ao abandono, longe das moradias ribeirinhas, Henrique observa a cena que se desenrola a sua frente, sem emitir um som sequer, aquela era uma crueldade para com ele.
         O navio larga novamente, algum morador das proximidades, deverá encontrar o corpo, mais tarde. Daí, a epidemia vai se entrar pelo mato, pelas choupanas dos agricultores saudáveis, alastrando-se até os povoados ribeirinhos mais afastados e as malocas escondidas no seio da selva. A temível semente da destruição ficou ali semeada. Respiram os oficiais de bordo. Estão livres... A conversa do comandante é retomada no rio interrompido:
         __ Pois bem, naquele famosos ano da cheia...
         Henrique desinteressa-se. Parece-lhe tudo um pesadelo. E dizer-se que assistira a cena, de braços cruzados! Pensar que diante de suas vistas se processara algo tão ilegítimo, tão criminoso.
         O homem estaria mesmo morto? Ele era um fraco, nada tinha feito. Viu com horror. Mas aceitou. Não quis atrapalhar-se em discussões com o comandante, ele também era novato, não conhecia a rigidez da região. Se Esthela estivesse ali... Quer tirar daí o pensamento.
         Passam no rio balsas com toras, engatadas uma às outras, à procura de rebocadores, que as conduzam aos grandes centros, muitas vezes chegam a ter mais de quilômetro e meio de comprimento. Encarapitados em cima, vão os caboclos, sorridentes, satisfeitos, mostrando os dentes falhos e amarelos, acenando alegremente ao pessoal de bordo. No navio o movimento intenso continua, sempre ao som da banda. As bandejas passam com as refeições, do corredor, sobem os  vapores cheirando a comida fresca. Todos se cruzam, se cumprimentam, sorriem, e movimentam-se. E sempre, o comandante cercado, contando casos.
         Henrique não sente necessidade desses contatos humanos. Ao contrário, aspira pelo isolamento, tanto quanto possível, nesse amontoado de seres humanos dispares. Seu olhar se perde na muralha de vegetação, que barra a visão da margem. As águas escorrem brandas, amaciando-se na tranqüilidade serena da tarde. Num tronco, que desgrudado de sua base, desce a corrente do remanso, gaivotas observam a paisagem a volta. Os mosquitos e muriçocas, intensificam o seu ataque, é durante a tarde, que a sua ação se torna mais devastadora.
         Na popa, alguns rapazes se divertem imitando o choro de um filhote, atraindo junto a amurada, um bando de botos rosados.
         As mulheres presentes, correm soltando ao vento, exclamações de alegria...
         O cachorro do morto, continua uivando na terceira. Subitamente é noite. Tudo se acentua no navio. A vida fora cessou, dentro, intensifica--se, Henrique conversa indiferentemente com qualquer um que lhe interpelasse. vem a saber que a bordo, está o arqueólogo lotado no Bom Futuro, para onde ele se dirige. Em pouco apertam-se as mãos. Um homem trigueiro, de maxilares proeminentes, cabelos encaracolados e grisalhos, a princípio Henrique imaginou que ele os pintava, parecia-lhe tão moço ainda.
         __ Alexandre Caravadgio, muito prazer...
         Caravadgio, lhe fala a respeito do acampamento, dos barracões, dos hábitos, dos outros técnicos e profissionais que lá se encontram. Henrique passa a viver intensamente dessa vida. Já não é bem o marido de Esthela, o observador atento da paisagem. As palavras do arqueólogo dançam na frente dele. Parece que em Manaus, nada deixou. Segue, apenas, rio acima, com o mundo diante de si.
         A viagem era movimentada, não se modificava muito a forma como ia se desenrolando, mas os horários não podiam ser observados. A cada momento, um acidente novo, um acontecimento inesperado. Era preciso cuidado para não esbarrar nas tronqueiras perigosas, não albarroar nos barrancos, que as vezes a cerração ocultava. A natureza brincava com o homem, impondo-lhe obstáculos, divertindo-se em alterar-lhe os rumos, como o gato que passa distraídamente a pata  no inseto a sua mercê. Era comum ver a terra andando sobre as águas: eram as plantas que, crescendo nos leitos dos rios , obstruíam a passagem em largos trechos, surgindo a tona, verdejantes, cheias de humo, viçosas flutuando.
         Havia grande alegria no reino animal, era a época da migração das aves, ainda à noite, ouvia-se o chiar das andorinhas, nos seus preparativos. Logo após, a barulhenta travessia dos papagaios pelo rio, pontuando de cores vivas o azulado esmaecido do céu. Por seis meses, desapareciam das margens, milhares de animais , enquanto que grande parte dos vegetais, que não podiam fugir, esperavam a morte por afogamento. Essa vegetação estrondosa, quando não a destróia a violências das águas, morrem, muitas vezes, pela mão dura e cruel do homem. Há grandes clareiras na floresta, clareiras que falam de dor, que bradam cuidados, que solicitam auxílio. Vazios que contam a brutalidade do homem, a cobiça gerada pelo dinheiro, a crueldade do braço do madeireiro. Mas a água trás nova vida, sedimentos novos. Rebrotam as plantas e novamente a vida palpita. É uma natureza eternamente renovada. Tudo aí, é violentamente substituído, tando pela mão do homem, quanto pela ação da própria natureza.
         Uma ou outra habitação, punha uma notazinha de esperança, naqueles ermos. Ouvia-se ao longe, o latido de um cão, o apito de um outro vapor, um galo a cantar atrasado.
         Lá adiante, uma choupana, pobre erguida sobre as paliçadas, algumas casas menos primitivas, um trapiche de tábuas... Um taperi improvisado, coberto de folhas de palmeira, um grosso toro, servindo de ponte, de entrada.
         No convés, dia e noite, Henrique absorvia as palavras de Caravadgio, destilando a prosa, feito um alambique de  carvalho. Indagava a respeito de suas múltiplas funções dentro do acampamento. O homem elogiava o Rodolfo. Sujeito esforçado, trabalhador como poucos, e de inteligência aprimorada! Henrique batia a cabeça assentindo. Todo os elogios seriam poucos, para gabar o amigo. Caravadgio contava a ele, que muitos dos profissionais do Sul, que trabalharam ali com eles, encontravam muitas dificuldades em se adaptar com o clima, muitos foram atacados pelas doeças tropicais. Contou-lhe a respeito de um tal Geremias que ficou doente, acabou contraindo num dos barcos gaiola da região, a malária, logo que chegou. Mas o leite do Amapá, já o tinha curado.
         __ É um excelente remédio natural da região, nossa equipe está estudando a fundo esses derivados vegetais, a farmacologia é abundante na região, graças ao povo daqui, estamos conseguindo um grande avanço na medicina.
         Entusiasmado com o assunto, Caravadgio emendou:
         __ Os caboclos dizem que o Amapá, é um ótimo tônico para as vias respiratórias, por causa da grande quantidade de cal que contém, explicava. __ E também o é, para mordeduras, ou picadas, como o queira. Para todas as moléstias com que a natureza ataca o homem, ela oferece um remédio, isso ele nos garantia.
         Henrique ria-se. O doutor tinha boa conversa, ele contava tudo aquilo, imitando a voz do tal caboclo. Depois de certo tempo, os dois companheiros com mesmo destino, jogavam conversa fora, falavam a respeito de tudo, trocavam amenidades.
         Também os acidentes fluviais absorviam as atenções dos dois conversadores. Desciam nas jangadas e balsas os rosários de madeiras. Havia-os enormes, de cerca de cem toros, fortemente atados por arames, tendo nas extremidades grossas argolas. Deslizavam nas águas as jangadas triangulares, levando sobre os toros amarrados com cipós, barracas rústicas, construídas para uma tripulação que fugia das agruras da mata. Eram as famílias dos necessitados, que não tinham dinheiro para pagar um transporte mais confortável. Era pitoresco vê-los passar, cada um deles trazia no rosto o riso tristonho de quem se enganara com a ludibriante riqueza da fartura amazônica.
         Trepados sobre os grandes toros, seguiam, pai, mãe, filhos, os velhos, os moços, os curumins, os macacos, os cachorros, os papagaios, enfim, tudo que o caboclo amazonense, julgava necessário a sua humilde vida.
         Lanchas dos mais diversos tipos cruzavam as águas turvas do Purus. As árvores a beira, chicoteadas, desesperam-se, em gestos de fúria. Torcem os galhos ramalhudos, viram-se e reviram-se, deitam-se sobre a corrente e abandonam-se aos assomos da possessa borrasca. Das praias sobem a areia, pulverizando o espaço.
         Nenhum ruído, nenhum grito de pássaro se ouve, diante do barulhão estrondoroso e bárbaro do temporal que se prepara.
         Nesse momento máximo, é a bruteza do céu, contra a rudicidade da terra. Grande contra grande, Titã contra Titã.
         A luz do dia, veio encontrar a terra, perfeitamente pacificada, de todo esquecida, das brutalidades da noite, Henrique, durante aqueles dias, observa atentamente as mudanças que ocorrem no cenário, mesmo atento às conversas de Caravadgio, ele observa a constância nos atos rebeldes da natureza, delicia-se com a possibilidade de conhecer os seus segredos.
         Nessa tarde, aportariam no acampamento Bom Futuro, do IBAMA, Henrique tinha a bagagem pronta, só ele e Caravadgio, desceriam, o resto da tripulação, seguiria rumo a Boca do Acre, a Floriano Peixoto ou até o alto Iaco.
         Faltavam poucas horas para o vapor atracar, quando se ouviu de bordo, um tiro de rifle. E logo surgiu lá na frente, depois da curva, uma galeota singrando a toda nas águas do rio. Ao aproximar-se a galeota, todos puderam observar as prateleiras vazias, motivo esse, que os fez descarregar o rifle, ao divisar, ao longe, numa das voltas sinuosas do rio, a grande trilha de fumaça do vapor, que se aproximava.
         O ousado lutador do vale das águas, o teimoso “egatão”
como é conhecido, solicita ao comandante que a galeota atraque no costado do vapor. Há um retardamento na marcha, e o turco é içado.
         Depois de estar a bordo, o comandante, sempre risonho, e ele, iniciam uma longa transação, a tripulação acorre ao convés, os passageiros estão curiosos, também desejam ver as negociações, Henrique se mantém ao largo, ele e Caravadgio saboreiam um delicioso suco de abacaxi, ou naná, como é conhecido ali.
         De tudo o que o vapor dispõem, o mercador se supre, para continuar o seu comércio fluvial , alimentos, latarias, cordas, ferramentas, querosene, baralho, alfinetes, agulhas, enfim, um verdadeiro supermercado ambulante, o pagamento é feito com farinha, castanha, borracha e dinheiro, na verdade, esse último, em muito pouca quantidade, Henrique soube pelo Caravadgio, que o comércio por ali, era assim, quase sempre na base de troca, o papel moeda ali, não tinha muita circulação, era aceito, porém, não circulava.
         O turco garante que tudo o que vende é do melhor, a sua farinha a mais pura, as castanhas mais saborosas, a borracha, garante, é da fina, homogênea, sem quebras. E como prova irrefutável , “jura bra Deus”, beijando os dedos sujos, postos em cruz.
         Autorizado pelo comandante, segue atado a proa, muitos passageiros por curiosidade, seguem na amurada de trás, para ver o estranho quadro, da galeota rebocada.
         O dia passa sem maiores acontecimentos, logo a noite deita por sobre a verdura sem par, daquelas matarias, envolvendo tudo com o seu manto. Há oito dias que navegavam dia e noite, apesar das muitas horas de descanso, Henrique se sentia esgotado, não via a hora de chegarem ao Bom Futuro, mas agora, isso lhe parecia estar perto.
         Henrique está com tudo pronto, de pé no convés, boné na cabeça, junto do arqueólogo encapotado. E eis que se ouve pelo ar, o apito cansado da embarcação que chega. A mudança no ritmo, ocasiona uma ondulação mais ousada na água do rio, formando ondas revoltas, que vão se quebrar junto ao barranco. Lá está o trapiche, avançando sobre o rio, a lanterna acesa e os vultos que vieram esperar pelo vapor, em meio ao enxame dos maruins que, em breve, cederão lugar aos carapanãs noturnos, insetos típicos da região. As máquinas vão se calando, a caldeira arfa pesadamente. O vapor embranquece as sombras avassaladoras da noite. A ordem para arriar a prancha é dada pelo comandante, e em breve o navio está ligado a terra. Gente sobe, em terrível confusão com a que desce, Henrique e Caravadgio tem de executar um fino balé, para poderem manter o equilíbrio em cima de tal prancha.
         Do navio são desembarcados os animais, os equipamentos, as mantas de carne e os fardos mais pesados. O cachorro do virulento, é jogado na água, e sai nadando, aflitivamente em direção à margem. Henrique observa a cena e relembra a triste figura do enfermo, sendo abandonado na margem do rio. Aquilo o comove, assim que se viu em terra, seguiu na direção do animal, que ao deixar as águas escuras do rio, chacoalhou-se todo, espirrando toda a água que tinha em seus parcos pelos.
         Henrique observou de perto o animal, ele ainda gania desesperado com a atitude dos marujos, aproximando-se no escuro, encontrou em seu pescoço a gasta coleira de couro crú, então, segurando-a com firmeza, caminhou em direção aos vultos que se movimentavam sob a luz das lanternas.
         Em terra, um montão de animais, gente, cargas e objetos dispares. Os bois começam a pastar ali mesmo, saciando a fome de oito dias, nos viços dos matupás da orla fluvial.
         Por entre as luzes foscas das lanternas, que tentavam clarear a noite que por si era iluminada pela lua, Henrique divisou o vulto esguio de Rodolfo. Em brecve se estreitavam num abraço vigoroso. Via-se de fora o enxamear das mariposas sequiosas, em torno das lanternas de querosene, das barracas trepadas sobre paus, ali perto. Os carapanãs, fazendo a sua aparição triunfal com as sombras noturnas, avançavam zunindo sobre o rosto de Henrique.
         __ Isso é assim mesmo, foi lhe dizendo o Rodolfo, É claro que um paraíso na terra não pode ser perfeito. Isto aqui é tão bom, tão bela a vida que levamos, que não poderia deixar de ter os seus inconvenientes...
         Dentro da semi obscuridade, Henrique era todo ouvidos, para os ruídos a sua volta, todo olhares para a grandiosidade da vegetação que, apesar do breu, ressaltava na paisagem limitada pela sombra.
         Caminhando em direção ao acampamento, queria a cada momento deter-se para olhar, para ver melhor, para gravar na memória o cenário que viera procurar tão longe e com ansiedade tal.. Mas o amigo estugava o passo, apressava-o. Dir-se-ia que tinha ânsias de chegar ao barracão, distante, entretanto, uns cinquenta passos dali.
         __ Espere homem, deixe-me olhar essas maravilhas, disse o recém chegado.
         __ Amanhã haverá tempo para vê-las, apesar de seu trabalho ser aqui mesmo no acampamento, contará com várias oportunidades para um passeio. retorquiu o amigo.
         Nesse instante o apito do vapor se despede, metendo uma emoção encoberta de certa tristeza no coração de Henrique. Estava enfim no Bom Futuro, desligado do mundo externo. Cortadas as amarras que o prendiam a Esthela. Em volta, a aglomeração das barracas, as canoas, mal entrevistas no escuro da noite, prontas para, na cheia, subirem os varadouros, os igarapés, e alcançarem os igapós perdidos no intrincamento da mata.
         Henrique foi encontrar no barracão, mais conforto do que esperara. Era uma casa construída sobre paliçadas, sem ornatos ou requintes de arquitetura, porém, bem dividida e espaçosa. Assim que subiram a escada, passaram o largo alpendre e penetraram uma ampla sala, Rodolfo bateu as mãos. Logo apareceu uma índia muito bonita, de olhar esperto.
         __ Este é o Henrique, vai trabalhar conosco aqui no acampamento, prepare um quarto para ele, e traga-nos alguma bebida, creio que ele está precisando...
         Após a primeira hora de conversa  com os outros companheiros da Estação de Estudos Bom Futuro, como o Gonzaga dizia, e a refeição que decorreu alegre, servida pela índia Naomy, Gonzaga lembrou a todos que o dia seguinte, seria de trabalho, despedindo-se mais afetuosamente do mais novo membro da equipe chegado, Gonzaga deixa a sala, seguindo para o seu quarto.
         Depois que os outros se recolheram, os dois amigos foram sentar-se no grande alpendre, à entrada do barracão. Já das toscas habitações em volta, nenhum ruído chegava. E aquele rumor quase imperceptível dos grilos e sapos na treva pareceu a Henrique a voz das milhares de estrelas que palpitavam lá em cima, nos céus.
         Cerrando os olhos, o rapaz absorveu com delicias, o ar embalsamado da noite. Aquela condensação de ruídos monótonos e ininterruptos das mil vozes indistintas da floresta, era como uma bruma auditiva, que envolvia e acondicionava a escuridão da noite. Como tudo era vasto e amplo.
         __ Rodolfo, você tinha razão, murmurou Henrique, com a voz alterada. __ Você tinha razão, isso aqui é que é vida ! o mais é artificialismo...
         E a conversa jorrou dentre os lábios dos dois amigos, natural como uma fonte cantante no seio da mata. Rodolfo lhe falou com uma sinceridade, que Henrique jamais havia conhecido. Até os seus habituais exageros se desfizeram. As palavras lhe saiam simples, sem floreios.
         Depois de algum tempo, o assunto se desviou. Rodolfo contou ao amigo, alguns detalhes a respeito da descoberta que fizera, ali na estação de estudos. Contou a respeito dos índios que ali apareceram, trazendo no pescoço e nas orelhas, penduricalhos de ouro, a guisa de enfeites.
         Henrique hesitou um pouco, depois deixou escapar:
         __ Não achei que você estava a vontade à mesa... Achei-o meio alheio a tudo o que diziam e...
         Mas Rodolfo cortou-lhe a frase, num gesto impulsivo.
         __ Vamos deixar essas preocupações para amanhã! Já não bastam as outras, que tenho tido por aqui, que tenho a cada momento?!...
         __ Outras preocupações?! Estranhou Henrique. __ É verdade, desde que cheguei aqui, notei em você uma apreensão qualquer, com relação ao Caravadgio... Que foi que houve?
         Rodolfo sacudiu o cachimbo e aproximou-se mais do amigo, olhando em volta para ver se não vinha ninguém.
         __ Você não imagina o que um índio coberto de ouro, representa nestes lugares! Para compreender, seria necessário ter vivido aqui, como eu estou vivendo, e ter sentido de perto a tragédia da vida de isolamento dos ribeirinhos e até mesmo dos próprios remanescentes indígenas da região!
         Henrique olhou o amigo, inquieto. Via-lhe uma emoção nova, uma voz desconhecida, uma desusada gravidade.
         __ Logo que aqui chegamos, Continuou o outro. __ Compreendi que a missão que nos trazia aqui, não era, na verdade o estudo geográfico da região, tão pouco da fauna e da flora, como alegam os técnicos e pesquisadores que aqui estão. Na verdade, desde o primeiro contato com os tais índios, o grupo todo se compactuou, com intenções de descobrir a proveniência do ouro, que traziam como enfeites. Quando eles apareceram, houve um grande interesse entre essa gente, um interesse muito grande  em relação às suas possíveis trocas e negociações. Os índios queriam negociar, apesar de não falarem a nossa língua, alguns dos peritos que trataram com eles, conseguiram entender, que eles queriam ferramentas, machados, facas, facões, machados, coisas do gênero. Foi aí que eu fiquei doente. E eu andei muito febril, picado pelas tocanderas. Não tive maior contato com eles, agora já faz algum tempo que eles não aparecem. A coisa ia indo mais ou menos, até o dia em que principiaram a chegar, os pesquisadores e geólogos do campo. Vinham ávidos e torturados por uma longa ausência da civilização. As diversas incursões, para estudos, nada renderam, até que se depararam com os índios Anuamãs. Seu moço, tivemos um trabalhão dos diabos! A visão dos penduricalhos dos índios, ocasionaram as mais sérias disputas entre eles. Muita facada e descarga de rifle saiu por aí, e mais de um corpo desceu embrulhado, numa canoa, para o cemitério... Eu não podia fazer nada. Em toda parte há um par de olhos cobiçando as pedras, e mais de uma dezena, embrenhados na mata, em busca do caminho que os silvícolas utilizam para chegar até aqui.
         Baixou a voz nessa última frase e depois se calou por alguns momentos. Mas logo prosseguiu, alteando de novo o tom:
         __ Quase toda a equipe, foi se matando, não houve repercussão nos jornais, pois o Gonzaga, abafou o caso. Os que não morreram, foram substituídos, todo o pessoal daqui é novo, com exceção do Caravadgio. Eu, não posso continuar assim, calado. Sem o Caravadgio e o Gonzaga por perto, penso que seria o paraíso. Mas não encontrei ainda quem me levasse uma carta denuncia a Manaus, por não confiar em pessoa alguma. Quando recebi a sua carta e soube que você vinha, disse logo: aí está a solução para o meu problema! Agora você veja Henrique, se me pode fazer o grande favor de levá-la quando voltar. Disso depende o sucesso dessa empreitada, do meu sossego, da vida desses pobres índios, que inocentemente, serão dizimados pela ganância do homem. Leve-a e entregue-a à autoridade máxima do IBAMA. Quando as águas tiverem subido mais, e todo o trabalho aqui estiver paralisado, irei a Manaus.
         Henrique esteve um momento calado. Mas logo se prontificou a ajudar o amigo em tudo o que fosse necessário. Levaria a carta de volta e entregaria-a no IBAMA, e o Rodolfo estaria livre para agir aqui, da melhor maneira possível. Ele sabia que estava se metendo numa aventura e tanto. Que vida incomparável! Ah!  Duma existência assim, que ele estava precisado! As vezes tinha vontade de tirar a canga e sair correndo pelo mundo, sozinho, sem empecilhos e arreios de forma alguma. Que adiantava forçar a natureza e viver na cidade, cheio de aborrecimentos, despesas, de problemas angustiosos, quando dentro dele um animal despertava, que pedia terras, e águas, distâncias a percorrer, mistérios a desvendar?...
         Rodolfo deixava-o falar, animando-o com apartes entusiasmados. Havia muito que os dois sonhavam com uns momentos como esses, em que pudessem soltar as palavras que lutavam lá dentro pela liberdade. O que um começava a dizer, o outro completava. Essa identidade de gostos e idéias era o principal encanto daquela amizade.
         Depois, Henrique contou os seus dissabores na cidade. Rodolfo interessava-se por tudo e queria saber pormenores de todas as questões. E como o amigo nada tivesse dito de especial sobre Esthela, perguntou:
         __ Como é que você vai se arranjando com a Esthela?
         __ Muito bem. respondeu o outro, tranqüilamente. __ Ela é divina.
         Houve um silêncio um tanto pesado e o Rodolfo desconversou. Só tornou a falar em Esthela, quando voltaram ao assunto da adaptação deles em Manaus.
         __ Pelo que notei, Esthela não gosta dessa nossa terra. retorquiu o amigo. __ Ela vive lhe espezinhando...
         __ Não... Você não compreende Esthela. Tentou explicar. __ Ela é de uma moral muito rija, é a criatura mais bem intencionada deste mundo, eu já disse, ela é um tesouro que caiu em minhas mãos.
         __ A mulher é o diabo para o homem! interrompeu Rodolfo, batendo o cachimbo para esvasiá-lo. __ O maior estorvo na vida de um sujeito. Nada de grande se pode realizar, quando se está preso ao rabo de saia, de uma delas. Uma mulher que come, vive, anda , respira e dorme, com o dinheiro que a gente ganha. A humanidade está toda errada. Fala-se muito em liberdade, entretanto, o homem se escraviza de todas as maneiras. Mal cria consciência de si próprio, procura os laços sagrados do matrimônio... Uns laços apertados que o pobre coitado nunca mais pode desatar! Bem faz essa gente daqui! Pensa que eles ligam para o casamento? Não querem nem saber de obrigação. E, se a mulher não presta, passam-na adiante. Há sempre quem as queira...
         __ Uma sociedade que não obedece as Leis, está fadada a dissolução.
         __ Ao contrário! O que dissolve a sociedade, são justamente essas Leis estreitas, em que não cabem os sentimentos humanos!
         Henrique procurou não alongar o assunto, não se sentia a vontade para discutir com ele, assuntos relacionados a mulher, ao casamento, e coisas do gênero. Ele sabia que o Rodolfo fora casado um dia, mas, traído, acabou sendo abandonado, então...
         Henrique preferia saber sobra a vida no acampamento, sobre os índios com as riquezas, dos pormenores pitorescos, dessa época febril de mudanças e substituições no acampamento.
         As corujas voavam por perto. às vezes a asa de um morcego roçava as suas cabeças. Os mosquitos também, não os deixavam tranqüilos. Súbito um grito estridente encheu a noite toda, prolongando-se em estranhas modulações.
         Rodolfo interrompeu a frase que encetara, para dizer:
         __ Está ouvindo? É a acauã. Os caboclos dizem que o canto dela traz azar aos que a ouvem ...
         __ Você acredita? perguntou Henrique, sorrindo.
         __ Nem um pouco.
         __ Eu também, não.
         Em todo caso a voz do pássaro agourento fez lembrar ao Rodolfo, que talvez já estivessem próximos da meia-noite.
         __ Vamos nos deitar, que amanhã às cinco horas tenho de estar de pé. O trabalho é muito, você verá. Vai ficar admirado com a atividade do campo.
         E, quando ia para fechar a porta, parou um momento e virando-se para o outro, disse:
         __ O que acha de encabeçarmos uma dessas expedições que entram mata a dentro, nós dois?...
         Henrique abanou a cabeça.
         __ Qual é Rodolfo! Isso é impossível! Eu sou um simples professor de história, apenas conheço um pouco de computadores... Eu tenho a Esthela... Minha carreira...
         __ Quanto a carreira, creio que o fato de interrompê-la lá na cidade, não impediria que você pudesse dar continuidade a ela por aqui. E quanto a Esthela, que diabo! Todos os pesquisadores daqui tem família. Se não quiser trazer para cá a Esthela, poderá ir vê-la de vez em quando...
         __ Qual é! Isso seria quase impossível, ela jamais aceitaria uma situação como essa.
         __ Falta o quase, meu caro, é ai que está a questão. Em todo caso, você pensará melhor no assunto. Para mim seria muito bom, porque nós ficaríamos juntos aqui. Sem falar na questão financeira para você, que é a principal! Ficaria milionário em pouco tempo. E eu estou aqui para ajudar em tudo. Se quiser, falarei com o Gonzaga a seu respeito...
         __ Oh! Por enquanto, não ... Isso não é uma resolução que se tome assim, tão de repente... Vamos pensar devagar sobre o caso... Eu vou ver...
         E o Rodolfo fechou a porta e conduziu o amigo até o quarto em que ele ficaria instalado.
         __ Como você vê, conforto aqui não falta. Só não há luxo. Mas o luxo deprime, efemina o homem. Aqui, o homem é macho mesmo, e a vida é pra macho de verdade!
         E abriu um armário do qual tirou uma garrafa de cachaça que entregou ao amigo.
         __ Feche bem o mosquiteiro e antes, esfregue isso na pele, para afastar os mucuins. Assim poderá dormir sossegado. Agora, boa noite! Tratemos de dormir, que amanhã teremos um dia encantador.
         Mal o amigo fechou a porta, Henrique levou a garrafa a boca.
         __ Que pele, que nada, isso aqui vai mesmo é para o meu buxo, bêbado, não vou nem sentir os bichos por aqui.


III


         Após a refeição matinal, a que não faltou, sobretudo as bolachas, o mel da jandaíra, do Ceará, Rodolfo encheu o copo do amigo, com uma bebida feita do fermento da macaxeira.
         __ Isto, é o caxiri, bom pra fechar o corpo da gente. Aqui não se passa sem um golezinho. Até nas barracas dos pesquisadores, no meio da selva, onde existe apenas o estritamente necessário à conservação da vida, a bebida constitui gênero de primeira necessidade.
         A manhã passou-se nas múltiplas ocupações que o cargo de operador de CPD exigia de Henrique. Por vezes ele observava o trabalho de Rodolfo, cheio de curiosidade. Chegavam os pesquisadores dos centros mais longinquos, trazendo nas costas suas mochilas, repletas de espécimes recolhidos durante a permanência dentro da mata fechada. Nas imediações do barracão grande, as barracas menores, dividiam-se, conforme a especialidade de cada pesquisador. Ornitólogos, Paleontólogos, Arqueólogos, Geólogos, Biólogos e uma enorme quantidade de “ólogos”, ali se amontoavam, juntando e estudando a bio-diversidade existente na área. O estoque de espécimes era enorme, sobrando para o terreiro, amontoando-se diante do barracão. De longe, quem os visse, diriam ser hipopótamos gordos e silenciosos, descansando em grupos compactos .
         __ Essas grandes sacas, ficam aí agora, aguardando o embarque. explicou Rodolfo. __ Se demorar muito, a maioria se perde. Quase sempre, quem mais sofre, são os animaizinhios capturados, diante do cativeiro, a morte lhe pega mais depressa.
         __ Mas você, no seu cargo, pode fazer alguma coisa nesse sentido? interrompeu Henrique.
         __ Em parte, sim. Posso ser humano e lutar por esses animais, mas quanto a exploração dessa gente humilde e espoliada... Se eu tivesse a faca e o queijo nas mãos, então sim! É que haveria de dar exemplo a esses tais que se dizem pesquisadores. Do meu campo de ação, no caso o Bom Futuro, não sairia bicho nenhum, para ser estudado e examinado em laboratórios fora daqui. Ao contrário, seriam estudados aqui mesmo. Construiria instalações dignas para esse fim, evitando assim a morte a destruição da floresta a nossa volta. Estudaríamos as espécies aqui mesmo, sem deslocá-la. Acredito que esse deslocamento, afeta o metabolismo de todas elas...
         E depois mudando de tom, com a fisionomia iluminada por uma ligeira comicidade:
         __ Primeiro decreto que eu baixaria: nenhum pesquisador poderia adentrar e viver na mata sozinho, deveriam sempre andar em grupos. Na solidão barulhenta da selva, os homens principiam a enlouquecer...
         __ Você pensa muito bem. Isso evitaria muita coisa.]
         __ Mais do que você pensa. O pesquisador, por exemplo, o geólogo ou o biólogo, que são os mais comuns por aqui, além de serem os mais dedicados. Porque vivem só e tristes, tem empenho em recolher a maior quantidade possível de espécimes, para libertarem-se de seu inferno. Muitos, apesar de nossa estrita proibição, no caso dos biólogos, praticam então os arrastões, isto é: espalham redes, quase invisíveis dentro da mata, para a captura desordenada de várias espécies de passarinhos, de aves de todos os tipos. Depois de retirarem as espécies que mais lhe interessam, acabam matando o restante, para evitar a complicação, de simplesmente, desenrolá-los da rede. A matança é rápida, e com a ajuda de uma canivete, os pés são cortados e os animaizinhos estão livres, então seus corpos sem vida, são lançados a esmo, pelas intrincadas trilhas da mata. Servirão de adubo à terra, ou alimento a outras espécies. Quando o ornitólogo pretende deixar a selva e voltar para o acampamento de uma vez, age dessa forma, muitas vezes mantém a rede armada na selva, matando a cada dia, novos animais. E, depois de recolher o máximo possível de espécies, vem trazê-la para trocar os animais pela sua suposta liberdade, esse período, é praticamente obrigatório na vida dos ornitólogos, é uma espécie de estágio probatório. Depois de fazer um levantamento das espécies que recolheu, ele retorna a Manaus, e de lá, segue para outras captais do Brasil, a fim de se empregar num laboratório ou centro de estudos mais avançado. Mas deixou na mata, o espectro de centenas de aves que irão definhar até a morte. O patrimônio nacional será prejudicado, mas que importa ao novato tudo aquilo? Que não deseja voltar. Ele quer é ver-se livre para sempre de sua vida infernal. Vai embora para as capitais, vai em busca de sua carreira nas cidades, em busca da promessa do dinheiro, que a profissão pode lhe proporcionar, em busca do prazer, onde, em pouco tempo, liquidará o dinheiro e a fama que conquistou, em cima dos pobres animaizinhos sacrificados para o seu sucesso. Você não imagina como a vida deles é dura aqui! Muito poucos é que tem mulheres. Vivem em geral, aos pares, mas alguns, ficam inteiramente sós, isolados a grandes distâncias. Há barracas separadas das outras um dia de viagem, ou mais. É difícil fazer-se a delimitação da área de pesquisas: Na frente e dos lados há limites determinados, mas a parte de trás entra pela mata, vai longe, ao âmago da floresta. Começa-se, geralmente, as primeiras expedições em 15 de abril. A princípio eles roçam e limpam as picadas. Chamam-se picadas os caminhos entre as áreas de pesquisa. Podem ser curtos, mas há uns longos, sinuosos, retorcidos, acidentados. Cada pesquisador, se encarrega de uma área em torno de um e três alqueires de chão, distribuídos a esmo pela floresta, localizados apenas pelos dados constantes no computador. Tudo aqui está, como a natureza quis. A natureza, muito ao contrário, parece que se diverte em dificultar o trabalho do homem, que tenta desvendar os seus mistérios. Terminado o trabalho da limpeza, em que geralmente o homem leva mais de quinze dias, conforme o terreno, ele começa a sua pesquisa, o seu estudo, as suas observações.
         Parte de madrugada muitas vezes, antes do amanhecer, sob a luz da lanterna, presa ao chapéu ou capacete, como o olho único de um cíclope em miniatura. Segue a picada circular, por ele mesmo cortada, munido dos gravadores, microfones, enfim, toda a tralha necessária às suas pesquisas. Tomando, entretanto, cuidado, a mata é cheia de perigos, animais se espalham por todos os lados, prontos para o ataque, a qualquer movimento. Por entre as picadas ele escuta, ele filma, ele captura e observa o alvo de sua pesquisa. Terminado o ciclo da manhã, volta ao ponto de partida e vai almoçar em sua barraca. Após a refeição, retorna pelo mesmo caminho, reencetando o circulo, percorrendo-o pela tarde afora. Chega mais uma vez, ao ponto de partida, então, prepara-se para a noite.
         Henrique escutava tudo, profundamente atento. Era uma vida miserável, única talvez sob a luz do sol, assim tão dura, tão cheia de sacrifícios, entretanto, como o seduzia, como lhe falava de coisas misteriosas e profundas, decorridas no silêncio das matas sepulcrais, onde a natureza conta coisas desconhecidas do homem! Quanto mais o Rodolfo lhe descrevia as penas e o duro labutar dos jovens pesquisadores, mais o seu espírito se envolava para aquelas paragens longínquas, silentes na selva, onde só se ouve o ronco das feras e o trinado dos pássaros.
         Vendo que o outro emudecera diante de suas explicações, o Rodolfo insistiu:
         __ Como vê, a vida dos pesquisadores no Brasil é dura, não é para sub-homens. Necessita de gente com têmpera de aço, ânimo de ferro. Mas é preciso fazer alguma coisa para melhorá-la. Dar a essa gente, mais conforto, mais perspectivas. E, sobretudo, acima de todas as coisas, não destruir, nem matar a natureza que aqui resplandece. Outro grande problema do lugar... alterou-se Rodolfo. __ É a cachaça, Gonzaga faz questão de recebê-la em grandes quantidades, distribui junto aos pesquisadores e os trabalhadores braçais que vivem aqui, para embaçar-lhes a vista. Certamente, ele não quer que eles reconheçam em suas ações, as verdadeiras intenções para com os índios Anuamãs. Na verdade o que ele mais quer, é botar a mão no ouro deles, isso sim!
         Nem sempre o Rodolfo podia estar a conversar com o amigo, Quando não estava separando espécies para o embarque, estava embrenhado na mata, resgatando esse ou aquele pesquisador, que havia se colocado em dificuldades.
         Nos momentos em que estava mais ocupado, deixava-o com Josiane, sua mulher. Henrique na verdade, não tinha muito o que fazer ali, sua tarefa na verdade, era catalogar as espécies colhidas e registrar-lhes os estudos e observações no computador, fazia isso, quase sempre durante a noite, durante o dia, costumava caminhar pelo acampamento, ouvindo aqui e e ali uma história interessante, sobre os mistérios contidos na floresta. Dessa maneira, Rodolfo o deixava no barracão, e ia resolver os seus assuntos, as suas tarefas. Sua mulher costurava para as crianças das choças disseminadas nas margens do rio, fazendo grandes calças de flanela e algodão para os pobres “curumins”, que andavam, na maioria das vezes, completamente nus. Recostado em uma rede, Henrique observava-a. Como estava diferente, abatida, lembrou-se de Esthela. Como ele gostaria que ela estivesse ali... Certamente uma faria companhia à outra. Henrique observava os curumins correndo nus, com suas barrigas volumosas, suas narinas escorrendo... Precisavam de auxílio, talvez uma pessoa igual a Esthela, que se preocupasse com os entes da terra.
         __ Estes dias são os mais movimentados do ano __ contava a moça, enquanto metia o grosso pano entre as carretilhas da máquina de costura. __ Estamos na época em que os pesquisadores retornam, o trabalho se torna interminável. A separação das espécies encontradas, novas descobertas... Quem sofre mais, são os ribeirinhos que o Gonzaga contrata. As pesquisas irão se interromper por seis meses, agora os estudos serão realizados aqui, ou na maioria dos casos, na capital. Em volta das barracas dos ribeirinhos humildes, vão plantando mandioca, feijão, um pouco de cana e  milho. A tarefa não é tão pequena: antes disso, eles tem que abater o mato, queimar a capoeira, a fim de ajeitar a terra para a plantação. E isso, se a água não invadir tudo, aniquilando todos os seus  esforços...
         Dir-se-ia que encontrava um prazer extremo em poder falar com amigo, em ter, afinal, o direito de se expandir com alguém. Henrique sentiu isso perfeitamente e depois perguntou com jeito:
         __ Está contente de voltar a Manaus? Sabe o Rodolfo quer que você volte em minha companhia, quer que fique lá em casa por um tempo.
         Ela baixou a cabeça, tristemente, e nada disse. No canto da sala, disfarçadamente, os olhos da índia  Nayá, pesavam sobre ela. Henrique desconversou.
         __ O clima aqui é bom, é temperado, não é?
         __ Sim. Rodolfo diz que a natureza é sábia, que se chovesse muito, seria mau, e que se houvesse uma seca muito grande, dessas que duram quatro meses ou mais, não haveria pesquisador que resistisse.
         Sempre pensando através do marido, sempre vivendo parasíticamente da vida dele! Henrique pensou um momento e em seu espírito, se desenhou, nitidamente, a imagem de Esthela, independente, livre, com idéias próprias, embora a ele ligada por uma forte afeição e os interesses da vida comum. Respeitava mais a uma mulher como a sua, mas lamentava que ela não pudesse ter a doçura dessa resignada flor de estufa, e a adaptabilidade dessa liana fiel. Esthela tinha individualidade. Seria preferível que não tivesse?
         Em pouco Rodolfo voltava, sempre entusiasmado, pronto a iniciar novas coisas, e planejar consertos e arranjos. E nos intervalos de tempo, de que dispunha, ia contando, explicando ao Henrique:
         __ O que há de curioso aqui é o sentido de transitoriedade que em tudo se nota. Nem as suas barracas esses homens constróem com segurança. É tudo mais ou menos, mal acabado. Pra quê?! Dizem eles. Se é por um ano, ou dois no máximo... E há uns que, quando aqui chegam, nunca mais largam essa vida! Vão morrer de uma flecha certeira, partida não se sabe de onde, ou da dentada de uma tucunabóia, ou ainda de malária. Nunca mais revêem suas terras devastadas, esturricadas , do Baturité, do Crato, de Cruz das Almas. Quando aqui penetram, largam a esperança. Até na alimentação, procuram gastar menos, a fim de acumular mais dinheiro para a sua volta. Comem pirarucu  duas vezes por dia, enchem-se de farinha, de jabá apodrecido, e sonham com as caboclas de Porangaba, e as prostitutas nas ruas movimentadas de Belém. Há alguns que, nessa ilusão, conseguem meter nos bolsos uma bolada pra mais de 5000 reais. Não através dos ganhos que o Gonzaga lhes paga, mas com a venda ilegal de animais, de pedras preciosas, e até mesmo de borracha.
         Depois relatava as ocorrências do dia no escritório, as novas pesquisas desenvolvidas, as novas descobertas, e a infinidade de novas espécies recolhidas.
         Henrique ouvia tudo mais ou menos calado, dando apenas um ou outro aparte, mas em seu espírito as idéias do amigo se cravavam como pregos pontiagudos. Sim, era preciso sacudir a letargia em que tinha caído o sistema, eram processos retrógrados, sem o estímulo do governo, sem as melhorias nas condições de vida desses estudiosos, em breve o país não contaria com novos sucessores. Isso sem contar com os especuladores, aqueles, que se interessavam apenas na exploração das jazidas, na desmistificação dos povos indígenas, na descaracterização dos mesmos.
         Logo caiu a noite. Não querendo aprofundar-se mais nos seus próprios pensamentos, Henrique resolveu sair para o alpendre para fumar. A escuridão em torno, pontilhava-se de pequenas luzes tímidas. Eram as lamparinas das barracas próximas ou distantes . Por toda parte um esfuziar de pontos luminosos sobre a terra: os vaga-lumes cruzavam a noite, riscando, borbulhando luz, cobrindo-a de pequenos lumes, vermelhos, brancos, verdes. Aos poucos o silêncio se fazia . Recolhiam-se os homens. Começava a vida intensa e sombria dos animais acondicionados às trevas.
         Após uma meia hora de conversa animada com o Carvadgio e o Gonzaga, os amigos se prepararam para dormir. Henrique sentia a cabeça cheia de sonhos, que lhe tinham deixado uns goles sucessivos de cachaça e cinzano. Após despedir-se do amigo, voltou ainda para o alpendre para olhar mais algum tempo, sozinho, o luar que se desmanchava sobre as coisas , escorrendo dos céus, como o leite de uma formidável teta invisível. De longe, ainda ouvia a voz do Rodolfo, fazendo algumas recomendações à Nayá, Henrique desconfiava que entre os dois, algo de errado estava se passando. Já estavam todos recolhidos, e em sua cabeça, deslizavam sonhos fantásticos, desejos absurdos. Era aquele cheiro da mata, aquela atmosfera saturada de humo que lhe entrava pelo peito, tomava conta dele, o esvaziava de tudo o mais, para imperar despoticamente  em seus sentidos.
         Naquele último dia que Henrique passou no Bom Futuro, a natureza parece que se ataviou e se encheu de feitiços para melhor prendê-lo, destilando sobre ele os seus filtros poderosos. Já na véspera, de noite, tinha estado desperto, escutando comovido da janela, os mil ruídos noturnos e olhando o céu estrelado. havia no ramalhar das árvores, que a brisa arrepiava, um estranho rumor de passagem, de afluências macabras, de fantasmas. O toque-toque metálico dos sapos, como o ruído de remos sobre a água remansosa, emprestava a paisagem uma umidade serena e refrescante. Mas nada disso era visível. O que se via era a beleza suprema do luar sobre a terra. E o mundo esbranquiçado pelos seus raios leitosos. Era como uma hóstia de silencio, que Deus comungava.
         Os quinze dias que ali vivera, tinham passado rápidos, cheios e inesquecíveis. Rodolfo não pudera dispor do tempo para levá-lo a pescar ou caçar, as atividades da época, o impediram de fazê-lo.
         Quando o friozinho precursor da madrugada  começou a percorrer a terra, Henrique se recostou no travesseiro e dormiu um pouco, nessa última noite no acampamento de estudos Bom Futuro.
         Logo pela manhã, o côro estridente de mil gurás, tucanos e araçaris, despertou-o alvoroçadamente. Era belo o dia, e como nascia triunfal, anunciado pelas mil trombetas das vozes estridentes do pássaros! Um dia de sol maior!
         Henrique teria um dia muito cheio, havia muito trabalho a sua espera, teria de catalogar e registrar resultados de muitas pesquisas, antes de ir embora. Logo, ele estava sentado em frente ao computador, digitando as informações que lhe eram passadas, pelos pesquisadores responsáveis.
         Quando o sol se aproximava de seu declíneo, seu trabalho estava terminado, Rodolfo convida o amigo para um passeio, e os dois saem a caminhar. Foram andando a esmo, pela floresta, alcançando as partes de terreno mais altas, que a água em breve lutaria para alcançar, penetrando em túneis de vegetação. Em cima das ramas altas se entrelaçavam formando grande arcos que impediam a penetração dos raios solares. O chão era úmido, de um verde sombrio, e havia por tudo, um augusto silencio que nada quebrava.
         Henrique, sem querer, baixava a voz, não querendo poluir aquela imaculabilidade, que era como a essência do mistério das matas.
         A tarde caia e os inhambus anunciavam o crepúsculo. Subitamente houve um assalto das trevas e o dia desapareceu no mistério negro e absorvente da noite. O ocidente, engoliu de um trago só, o sol, porque não havia elevações para projetarem as sombras na planície.
         Nessa noite, esperavam o vapor, onde Henrique e um número exorbitante de equipamentos e amostras recolhidas, seriam embarcados. Nayá encarregou-se de preparar um tucano ainda para o jantar. Henrique declarava que ia sentir saudades do Bom Futuro. Que aquele passeio na floresta, tinha sido uma coisa formidável.
         À noite, ouviram de longe o apito do vapor que se aproximava. Foi um corre-corre nas vizinhanças do barracão. Todos corriam para ver, todos compareciam ao embarque de Henrique e Josiane, que seguiria para Manaus, para passar um tempo na casa do amigo. Em volta do trapiche, havia grande aglomeração de gente, de fardos, de animais em gaiolas, em pequenas jaulas, a maioria dos equipamentos aguardavam, amontoados, como elefantes escuros, adormecidos.
         Os esteios de acaricoara do trapiche, fincados na água, pareciam gastos e insuficientes, para agüentar o peso de toda aquela gente. O assoalho de acapu parecia querer ceder. Nas águas, surgindo, por vezes, à tona, passavam os graciosos botos, fazendo farfalhar a superfície  do rio.
         Logo o vapor estava atracado,  ligação da terra com ele, foi feita através da prancha de embarque, logo a mistura de homens e animais, se desenhou a frente dos espectadores, quem olhasse de longe, suspeitaria que ali, trabalhavam um exército de formigas carregadeiras, dezenas de saúvas, levando para dentro da embarcação os fardos ali dispostos para o embarque.
         Rodolfo ao despedir-se de Henrique, disse-lhe ao ouvido:
         __ Não se esqueça da gente, amigo! Lembre-se do Bom Futuro e aquela sugestão que lhe fiz... Pense naquilo com calma! É o único jeito que vejo, para você enriquecer depressa. E, se resolver qualquer coisa, escreva, para eu me entender com o Gonzaga!
         O apito de despedida do vapor subiu, agudamente, pela noite. Houve uma confusão de gente que entrava e saía, e quando todos estavam embarcados, ainda Josiane apertava nos braços tremulos o homem que era todo o seu mundo, num abraço silencioso que não queria mais acabar.
         __ Depressa minha senhora! Suba, que vamos tirar a prancha!  Gritou de bordo o imediato.
         Henrique tomou-a pelo braço. Rodolfo, ligeiramente contagiado por aquela emoção, gritou-lhe procurando animá-la:
         __ Até breve hem! Tome cuidado com a saúde e me espere em Manaus!
         As máquinas roncaram e em breve o vapor, um pouco adernado pelas múltiplas e novas cargas recebidas, partia. Os adeuses soavam melancolicamente na noite eram. Cães latiam,
         Henrique debruçado na amurada com Josiane, via sumir o porto ao longe, até que uma curva tragou o farolzinho do trapiche. A moça levou as mãos ao rosto. Só agora chorava. Os soluços sacudiam os seus ombros delicados. Henrique tomou a sua mão delicadamente. Em volta, era o movimento incessante de passageiros que iam e vinham, acotovelando-se, desajeitadamente, no espaço reduzido do vapor. Muitos reclamavam, do pouco caso da Companhia para com eles, da promiscuidade com os animais...
         Josiane enxugou as lágrimas e murmurou com uma voz diferente:
         __ Não sei o que é que me diz que nunca mais o verei...
         E como Henrique procurasse animá-la, afirmando-lhe que o Rodolfo haveria de ficar bem, que nada faria sem a ajuda dele, ela baixou a cabeça, fixou os olhos no redemoinho das águas que a roda do vapor agitava e disse, quase sem voz:
         __ É inútil... Sei que é o fim, ele não vai esquecer essa idéia, ele não pode combater o sistema, vai tentar agir sozinho, é o fim...

IV


         Quando Henrique se viu enlaçado pelos braços carinhosos de Esthela, o mundo lhe parecia outro, inteiramente diverso daquele que ele havia estado por alguns dias e do qual trazia fortes impressões, mas que se devanescia, entretanto, ao simples contato desse corpo querido. Era formidável o poder de absorção que tinha a Esthela! Tudo desaparecia, nada perdurava. Ficara-lhe, daqueles dias encantadores de sua viagem ao Campo de estudos Bom Futuro, uma lembrança absurda, como de uma entrevista em sonho. A realidade era Esthela.
         Quando o vapor chegou a capital, com seus embornais submersos, e a sua carga exótica de papagaios, macacos, periquitos e jacamins, com os enormes volumes destinados a Central do IBAMA, Henrique e Josiane foram recebidos pela sua esposa, que carinhosamente viera esperar-lhe no porto. Os três seguiram de carro para casa, Henrique não teria de apresentar-se a Central, naquele dia, somente na segunda feira.
         Em casa, muitos vizinhos vieram visitá-lo, queriam conhecer o relato pormenorizado das aventuras do paranaense, ou “sulista” como o chamavam, na terra sem lei.
         O Rafael apareceu circunspecto como sempre, era companheiro de Henrique no CPD da Central, os cabelos oleosos, as calças novas, de vincos marcados, os colarinhos duros e sapatos pontudos. D. Izaura, a vizinha do lado, foi cumprimentar o recém-chegado, com uma grande travessa de balas e beijus. D. Francisca e Heloísa também compareceram. Esta queria saber da viagem de Henrique, com todo os detalhes.
         __ Conte, conte mais __ pedia.
         E não tirava os olhos do rapaz, dizendo que ele tinha mesmo razão, que a vida na selva devia ser mesmo uma coisa divina.
         Esthela reteve, um momento, a atenção nela, quando a viu assim enaltecer uma existência que não conhecia. E no seu olhar era visível uma reprovação, que a outra sentiu imediatamente.
         __ Desculpe Esthela... Talvez não lhe agradem as minhas palavras, compreendo que você tenha outros interesses a defender...
         Os olhos negros de Esthela faiscaram durante um instante sobre ela, e de seus lábios escaparam essas palavras pausadas:
         __ Os meus interesse, são os de Henrique. E eu sou contra tudo que o possa roubar de mim.
         Esthela na verdade, não simpatizara com a vizinha desde o princípio, ela notava os olhos de cobiça, que ela lançava ao seu marido.
         Henrique contava, sentado no meio do circulo de amigos, o que tinham sido aqueles quinze dias encantadores.
         __ Aquilo é que é vida minha gente!... Isso de cidade, não é pra mim!...
         Esthela ergueu-se vivamente e começou a distribuir os doces que D. Izaura havia trazido.
         Henrique mostrou os curiosos presentes que trouxera.
         __ Isso é para vocês verem que eu não me esqueci de casa! __ disse, olhando intencionalmente para Esthela.
          E Esthela gostou quando D. Izaura lembrou, que já eram horas de irem embora.
         Depois de ajeitarem Josiane no quarto que será do filho, que tanto planejam, Henrique e Esthela vão para o quarto deles.
         A sós, Henrique e Esthela conversaram com mais calma. Ele lhe falou longamente a respeito da vida no acampamento Bom Futuro, das atividades dos pesquisadores, da história com os tais índios, os Anuamãs. De suas emoções diante dos deslumbrantes espetáculos da natureza. Ao fim de algum tempo, a esposa exclamou, no silêncio do quarto:
         __ Está muito bom, mas agora acabou-se, não é?
         Não poderia ter dito palavras que naquele momento agradassem menos a ele. O marido não respondeu. Deixou, mais uma vez, vazios os espaços que os separavam. Limitou-se a tomá-la nos braços, beijando-a com paixão. E naquela noite pareceu-lhe que o amor anulava esses vácuos, enchia esses abismos.
         Daquela hora em diante, ela se entregou completamente a paixão dos carinhos dele. Henrique numa ânsia de tê-la junto a si, mal esperou que ela se livrasse das roupas que vestia, depositou-a, gentilmente na cama, e despiu-a sofregamente. O desejo latente, pulsava por todo o seu corpo, seu órgão entumecido, reprimido pelas barreiras que a calça lhe infringia, doíam-lhe. Logo, os dois estavam nus, entregues aos mais diversos carinhos, cúmplices de atos, que jamais seriam pronunciados. Henrique havia, durante os três anos em que se mantinham casados, conquistado-a inteiramente. Os tabus e preconceitos, provenientes da educação rígida que recebera, dos pais, no leito, desapareciam por completo, eram fumaça espalhada no vento. Na cama, Esthela, deixava de ser a esposa comportada, a gueixa obediente. No ninho de amor, ela se tornava a meretriz ativa, sua vergonha e decência, eram lançadas para fora da janela, e ela se entregava as mais incríveis fantasias amorosas.
         Ao abrir os olhos, no dia seguinte, a primeira frase que Henrique ouviu foi a de Esthela:
         __ Esqueça-se de tudo que lhe disse ontem, a minha vida está, onde a sua está. Se é para a floresta, que deseja ir, eu o acompanharei...
         Henrique ficou inteiramente desconcertado, não compreendia nada daquilo que ela lhe dizia, o que será que havia acontecido?
         Os dias se passaram numa monotonia exagerada, o serviço na Central não lhe atraía mais, seu corpo, estava ali, na labuta diária, mas, sua mente, esta estava longe, ela se perdia nas muralhas verdes da floresta, a cada dia que passava, mais ele ansiava por uma carta do amigo Rodolfo.
         Nessa tarde, quando Henrique chegou em casa, Esthela não pode furtar-se de lhe contar o que havia acontecido:
         __ Henrique, chegou uma carta para você!
         __ Do Rodolfo!  exclamou o rapaz, contente, rasgando rapidamente o envelope.
         E antes do jantar ir para a mesa, ele voltou ao quarto e pediu a Esthela que escutasse um momento. Ela estava diante do espelho, erguendo os cabelos. Voltou-se muito fria e disse-lhe que poderia falar.
         Ele, sentindo nela a barreira que sempre os separava, encontrou dificuldade de começar.
         __ A carta não é do Rodolfo, foi o Gonzaga quem enviou... Você lembra do Gonzaga, não? Eu escrevi uma carta ao Rodolfo, assim que cheguei, a respeito de Josiane... Você mesma me aconselhou para que eu tomasse uma providência a respeito... Procurei não ser cruel. Disse-lhe que ela não poderiam permanecer aqui em casa por muito tempo, as pessoas iriam falar... Que pegava mal... Não quis ser cru. Fiquei com pena dele, e dela também. E agora, quem me responde é o Gonzaga. Diz que...
         Hesitou. Esthela interrompeu o penteado, voltando os grandes olhos negros para ele:
         __ O que é que ele diz?
         __ Leia! disse o marido, estendendo-lhe a carta. __ Assim você o entenderá melhor.
         Esthela tomou o papel nas mãos. Henrique sentou-se na cama, aguardando. E, enquanto isso, acompanhava a mudança de expressões na fisionomia da mulher. Esthela terminou rapidamente a leitura e, devolvendo a carta ao marido, ergueu-se friamente.
         __ Você não irá substituí-lo, teu lugar é aqui, ao meu lado.
         Andou pelo quarto. Foi buscar a escova de roupa e passou na saia de lã por diversas vezes, sem necessidade.
         __ Esthela... começou ele. __ É preciso, também, não julgar as pessoas muito depressa. O que o Gonzaga está me pedindo, não é tão impossível assim... Com o desaparecimento de Rodolfo, suas funções ficam em vacância. O que eu não estou entendendo, é o que ele quer dizer, com “Desaparecido”?
         __ Ora, ele nos passou o fardo, a Josiane, coitada. Na certa, deve ter encontrado o caminho até os tais índios que você vive falando...
         __ Não, isso não seria possível, eles quase nunca deixam pistas... Isso está me parecendo coisa do Caravadgio!
         __ Caravadgio! Quem é esse?
         Sentando-se novamente sobre a cama, Henrique a puxa para si, então, depois de olhar para os lados, para a porta entreaberta do quarto, ele lhe conta a história toda a respeito do pesquisador.
         __ É isso, vai ver que ele descobriu mais algumas falcatruas
do talzinho, e deram um fim nele...
         __ Meu Deus, você me fala isso, assim, sem mais nem menos...
         __ Não é pois, uma das mais prováveis conseqüências?
         Henrique admirou-a por um instante, achando-a esplêndida assim, naquela atitude. Esthela ainda olhou mais uma vez para o espelho.
         __ Não precisa mais se olhar. Está bonita! Muito bonita mesmo!
         E, passando-lhe um braço por entre a cintura, pousou-lhe um beijo no pescoço. deixaram o quarto e foram para a sala, a fim de jantarem.
         À mesa, Henrique, Esthela e Josiane, conversavam animadamente a respeito da volta de Josiane, para junto de Rodolfo no Bom Futuro, mas apesar das insistentes evasivas de Henrique, Esthela acabou contando o sucedido com o marido dela.
         A comoção foi total, um choro incontido se abateu sobre a moça, impelindo-a diretamente para o quarto de hóspedes, Henrique não quis comentar nada, passou o resto da noite, mergulhado em seus pensamentos, imaginando como poderia ser a sua vida no acampamento, se Esthela o acompanhasse.
         Ele lembrava, das muitas conversas que tiveram no passado, quando ainda viviam no Paraná, dos sonhos que alimentava, da companhia ideal que ela lhe seria, naqueles ermos...
         O sono abateu-lhe, bem depois da meia noite.
         Na manhã seguinte, no escritório, Henrique soube das tragédias que se abateram sobre o acampamento do Bom Futuro, toda a cúpula do IBAMA, estava em estado de alerta, os índios Anuamãs, havia atacado o acampamento, esquartejando todo mundo que ali se encontrava, não restou nenhum sobrevivente.
         Para o Henrique, aquilo foi um choque, ele não conseguia acreditar, sua boca estava seca, uma gota gelada, escorria levemente sobra a sua testa, ao lembrar-se dos amigos que lá fizera, uma ânsia lhe subiu, levantando-se rapidamente, correu ao banheiro. Agachado em frente ao vaso sanitário, Henrique vomitou todinho o café da manhã.
         Foram dias de tristeza para toda a equipe da Central, muitos profissionais perderam a vida, com esse ataque inesperado, alguns pesquisadores, já tinham sido enviados para lá, a fim de descobrirem o motivo da agressão.
         Naquela tarde, quando Henrique chega em casa, se depara com uma carta, vinda do Bom Futuro. Henrique a princípio não se preocupou com a data estampada no envelope, apenas com o estranho objeto, que ali estava guardado. Abrindo-o rapidamente, verificou se tratar de uma peça indígena, esculpida em uma pedra amarela, que logo, que pôs as vistas, descobriu que se tratava de ouro. Junto a pedra, havia um mapa, mal traçado de uma trilha, que partia do acampamento Bom Futuro, junto ao mapa, um pequeno bilhete, que de acordo com a letra, parecia-lhe ter sido escrito com muita urgência. “Preciso de ajuda, estou prisioneiro dos índios”.
         Como a carta havia lhe chegado às mãos, Henrique não sabia, havia encontrado-a sobre a sua mesa, no envelope, a data, mostrava que ele fora postada a duas semanas atrás, cinco dias, após a sua volta para Manaus. Aquilo estava ficando quente...
         Temeroso, Henrique resolveu mostrar a carta ao Superintendente do IBAMA, na região, marcou hora e levou até ele a carta que recebera, junto com a pedra esculpida em ouro, que ele julgava ter sido enviada pelo seu amigo Rodolfo.
         Ao tomar conhecimento de tudo aquilo, Ricardo Falcão, o Superintendente do IBAMA, exigiu sigilo absoluto, estudando a pedra trazida detalhadamente, ele obteve as respostas que procurava. Desta vez, estavam mesmo às voltas com uma grande descoberta, através daquela pedra, eles conseguiriam chegar a uma das mais procuradas civilizações indígenas, da Amazônia. A operação teria de ser sigilosa, a possibilidade de se encontrar uma grande quantidade de ouro, poderia determinar o total extermínio da nação, bem como, resultar numa grande invasão de mineradores, a área poderia ser totalmente destruída, tanto a fauna, quanto a flora da região. Além disso, o Governo não poderia permitir que a suposta jazida, caísse em mãos erradas. Dessa forma, Henrique foi mantido em regime fechado, dentro das instalações do IBAMA. Depois de alguns dias de estudos, um grupo formado por seis homens do exército brasileiro, especialistas em ações na selva, resolveram seguir com uma expedição, rumo ao Bom Futuro, e a captura dos possíveis índios envolvidos na chacina do acampamento.
         Henrique deveria seguir com eles, era a sua oportunidade, de provar ao mundo, os seus conhecimentos, a sua bravura.
         Um dos “Grandes” do IBAMA, ficou encarregado de dar a notícia a Esthela.
         __ Pois é isso minha senhora, O Henrique nos pareceu a pessoa mais indicada para comandar a Reserva de Itaúna, enviamos ele para lá, para se adaptar ao local, em breve, a senhora poderá acompanhá-lo, acredito que ficará satisfeita, é um lugar aprazível, tem luz elétrica e uma ótima casa, o salário, é muito compensador...
         Esthela ia concordando com tudo. Compreendia o esforço do tal “Grandão” em convencê-la.
         Henrique lhe pedira que evitasse lágrimas. Tinha-se comportado a contento, procurando afazer-se à idéia de que não se tratava de uma longa separação. Uma pequena ausência de um mês, apenas... “Somente o tempo de me ajeitar na Reserva” dizia ele.
         Para o seu aniversário, ela já deveria estar junto dele. Não havia motivo para ficar triste. Procurava mesmo mostrar-lhe uma alegria que não sentia. Gostaria de estar a sós com o marido agora.
         No embarque, todos os vizinhos e amigos estavam presentes.
         Henrique todo sorrisos, cercado de gente, concordava. Sim, era por pouco tempo, o suficiente para ajeitar as coisas por lá...
         Todos se tinham despedido carinhosamente deixando o abraço da esposa para o fim. Entretanto, não demorara muito na despedida. Via ainda Josiane puxando-a pelo braço, delicadamente. E os gritos aflitos de D. Izaura :
         __ Anda Esthela! Se não você também vai para a Itaúna!...
         No momento de largar o marido, Esthela pensara em sua carreira. Foi o que lhe deu forças para deixá-lo partir. Ela sabia que o cargo que ele iria ocupar na Reserva de Itaúna era importante. Nem uma lágrima lhe viera aos olhos e Henrique estava contente com essas disposições. De longe ainda lhe acenava, com alegria, como se lhe agradasse a coragem demonstrada. A hélice do gaiola que começara a girar, primeiro de leve, aos poucos, depois mais depressa, cada vez mais rápida, girando por fim como uma doida, parecia também ativar de um modo fantástico as suas emoções, a sua vida, o seu destino. As águas levavam o que era seu, só seu, sabe Deus, para que resultados. As lágrimas que a presença de Henrique tinha retido saltaram, então, em borbotões de seus olhos. D. Izaura murmurou-lhe no ouvido:
         __ Coragem menina! Tudo vai dar certo, logo vocês dois estarão juntos novamente...



V


         Por coincidência, o gaiola em que Henrique viajava era o mesmo que o levara anteriormente ao Purus. Logo que, como uma certa dificuldade, o comandante o reconheceu, estabeleceu conversa com ele. A presença dos soldados do exército, que o acompanhavam, trazia uma calma sem fim ao comandante da embarcação. Sabedor das ocorrências no acampamento Bom Futuro, exclamou:
         __ E o senhor não tem receio de retornar ao Bom Futuro?
         Henrique levantou os ombros. Seria perigoso, mas contava com a ajuda de valorosos soldados, ele saberia se aproveitar da situação, além do mais, traziam diversas armas.
         Por isso, as palavras do comandante da embarcação, não o impressionaram. Gostava de conversar com o simpático velho, que sempre tinha casos estranhos para contar. Pelo prazer de estar a sós com ele, fugia do Coronel Amâncio, que trazia cinco outros fuzileiros, para o Bom Futuro. Os homens estavam amontoados na terceira, não queriam levantar suspeitas. Henrique  ainda não os vira de perto, evitando com nojo o cheiro nauseabundo que se desprendia daquela parte do vapor, onde se misturavam na maior promiscuidade, homens, animais e comida. Via da primeira, ao lado do Coronel Amâncio, com certa repugnância, os filetes rubros que corriam nas tábuas lá de baixo, dos bois, ali mesmo esquartejados. Ouvia a choradeira monótona das crianças, o barulho dos xerimbabos, e subia até a primeira, um odor carregado, de tabaco ordinário. De quando em quando, um papagaio vinha, batendo as asas, espalmar-se cá em cima. Era uma correria de mulheres e homens, desencontrados, chamando pelo louro. O comandante do barco, acostumado a tudo aquilo, não se incomodava. Até se ria, quando alguns incidentes grotescos, lhe chamavam a atenção.
         Nos dias que se seguiram, nada de extraordinário, abalou a vida monótona dentro da embarcação, Amâncio e seus homens, entrevistavam os ribeirinhos, tentando levantar pistas, para a elucidação do caso do Bom Futuro.
         Certa manhã, Amâncio chegou-se para o Henrique e disse:
         __ Henrique, essa noite caiu aqui no navio, uma praga de potó, além de quatro dos meus homens, outros vinte ribeirinhos, foram atacados. Temos mais de dezoito homens com o rosto, mãos e pernas, tudo cortado, ferimentos, como se fosse feito a faca.
         De caminho para a terceira, Henrique relatou ao comandante o que estava acontecendo.
         __ Essa é uma das surpresas a que eu me referi ontem a noite. disse ele. __ É a segunda vez que o meu barco é atacado pelo potós. Eles vem voando da mata, atraídos pelas luzes de bordo e aqui dentro ficam privados das asas, que caem com o calor das lâmpadas. Metem-se, então, aí pelos cantinho e ninguém vê. E, no dia seguinte, é isso... Dezenas e dezenas de criaturas amanhecem lanhadas e feridas! O potó ataca durante o sono e fere como quem quer, deixar marca definitiva, com raiva!
         Ao verem a aproximação do Coronel, os soldados se puseram todos de pé. E, como junto dele, estava o Henrique e um médico, o Henrique se adiantou:
         __ Vamos homem, mostre a sua ferida ao doutor. E você também, venha de lá! E você, e mais você! Você!...
         Os pobres coitados iam desfilando diante do médico, mostrando-lhe os estragos que os insetos tinham feito em seus corpos. Em todos porém, o médico encontrou ferimento de gravidade. Só num, via-se-lhe mais funda, no rosto, a ferida, como que retalhada com um chicote de fogo. Após examiná-lo com mais atenção, o médico ordenou ao soldado, que subisse à primeira.
         __ Venha comigo, traga a sua rede!
         E como o homem tremia, tomado de violentos calafrios, acrescentou para um segundo soldado:
         __ Você aí, pega a tralha dele e venha, também, cá pra cima.
         Os dois homens seguiram-no respeitosos. Henrique confabulou com o comandante. Por um dia ou mais os dois soldados deveriam permanecer no convés superior. Depois de terem as feridas tratadas pelo médico, Henrique entrou a conversar com eles. Como se chamavam e de onde vinham? Os homens meio intimidados, por essa inesperada atenção, sentiam-se quase mal, obrigados a falar assim a um civil, de supetão.
         __ Eu me chamo Carvalho. disse o ferido, que era um soldado forte, simpático, de grande olhos fundos.
         __ E eu, me chamo Fernando, mas meu nome de guerra é Elias.
         Henrique manteve-se ainda algum tempo ali, conversando com os dois feridos, falaram amenidades, não tocando no assunto do Bom Futuro, em nenhum momento sequer.
         Convencido de que não deveria mais se misturar junto aos homens de Amâncio, afastou-se. Mas a figura do atraente soldado, ficou-lhe a ocupar o pensamento. Coitado do sujeito! Parecia tão bom, e dele se desprendia qualquer coisa que era como uma confiança que depressa se impunha, que logo prendia a gente.
         Com o passar dos dias, os soldados foram melhorando das feridas, causadas pelos potós, tudo voltava à normalidade diária, dentro de um gaiola do amazonas.
         Às três horas, subiu pelo ar o apito prolongado do gaiola. E no dia, que se transformava de luminoso em fosco e indeciso, surgiu ao longe a visão pacífica da Reserva Bom Futuro. Na terceira, o louco vai e vem do desembarque. O Amâncio, suarento, irritado, dava ordens enérgicas aos seus homens, sem serenidade. A partir dali, estariam sob o seu comando, Henrique teria de se adaptar. Carvalho disse ao Henrique:
         __ Vê se você arranja um jeito, de ficar perto de mim, eu sou novato e tenho medo das caçoada dos outros... É porque eu tenho o sangue quente... Eu sei do que estou falando... Depois que eu entrar, dou uma boiada pra num sair... Eu sou assim mesmo...
         __ Prancha fora. era a ordem gritada em alta voz.
         De todos os lados surgiam no porto, cabeças ávidas pela chegada do gaiola. Desciam fardos e muitos equipamentos, algumas reses e o correio.  A bagagem dos soldados, cada um levou a sua.
         O abraço de acolhida do Genésio, foi entusiástico.
         Ele era o Capitão responsável, ali na Reserva. A área toda estava cercada, soldados do exército brasileiro, se espalhavam por toda a área, depois do ataque desfechado pelos índios Anuamãs, a Reserva se manteve em estado de alerta.
         __ Ah! Meu velho, eu sabia que você haveria de vir! Bem senti em que terreno eu estava lançando a minha semente!...
         Henrique ouvia o diálogo, entre os dois oficiais, entusiasticamente, sentia que um confiava no outro. Olhando em redor, Henrique vivia um dos momentos mais felizes de sua vida. Tudo aquilo era agora seu, pelo menos por mais dois meses!
         No barracão a tristeza era comovente, todos vieram cumprimentá-lo, havia ali um bom número de pesquisadores, tentavam juntar o que havia restado da equipe anterior. Henrique havia sido designado para o comando do Bom Futuro, mas estava abaixo do Amâncio. Todos os empregados da reserva, os sobreviventes e os novos contratados, queriam conhecer o seu novo chefe. Em nenhum de seus inferiores, Gonzaga deixara boas lembranças.
         Depois de instalados, Amâncio resolveu fazer uma reunião com os seus homens, precisavam o quanto antes, preparar as equipes de expedição, a fim de resgatarem os possíveis prisioneiros, no caso, o Rodolfo, e mais uns três pesquisadores, que ainda não havia dado sinal de vida.
         Depois de analisar o grande mapa, esticado sobre a tosca mesa de madeira, no grande salão do barracão, Amâncio dividiu o grupo em oito subgrupos. Ele, permaneceria na Reserva, a fim de prestar socorro, a qualquer das equipes que o requeresse.
         __ Escolhi para vocês, a área do Riachão, é uma boa zona, e pelo que sei, houveram contatos mais íntimos naquela área. Fernando Elias, estará no comando da tropa, ele conhece bem a região. Lembrem-se das ordens, nada de matança desnecessária, apenas localizem e demarquem a área, então, nós faremos o resto. O professor vai com vocês, olho nele!...
         __ Riachão? Não me lembro desse lugar... Não lembro de ter andado por essas bandas... Onde que fica?
         __ Você vai andando, como quem vai para o “Salto das Araras”... Tá lembrando? Depois, quando chegar a uma sumaumera velha, cercada de sapopema... Tá lembrado? Quebra a direita, por aqui. o comandante apontava uma linha no mapa. __ Vai seguindo sempre pela picada, certamente, irá encontrar, pegadas de burro, recente, no chão. A dois dias um dos pesquisadores retornaram por ali, existe no meio da área, o Riachão, como é conhecida a demarcação.
         __ Fica muito longe do Salto das Araras?
         __ Coisa pouca, mas vocês estarão bem prevenidos, haverá mantimentos para três meses, armas e munição, caso a comida se torne escassa, poderão caçar...
         Os olhos grandes de Carvalho, estavam pousados sobre o companheiro, nas expectativas de suas resoluções.
         __ Se as coisas se tornarem perigosas, passem um rádio, demarquem a área e retornem a Reserva, entendido?
         E foi chamando os outros chefes de equipe, para metê-los nas demais locações.
         Henrique por sua vez, recebeu de Elias, uma grande mochila, contendo, corbertores, víveres, barraca, armas e munição, bem como uma interminável lista de utensílios, para a sobrevivência na selva.
         __ Vamos embora minha gente! Carreguem suas tralhas! gritou o Elias, depois de tudo pronto.
         E a curiosa caravana se pôs em marcha, cada soldado, inclusive o professor, leva a sua mochila às costas, nas primeiras horas, a falta de costume do professor, custou-lhe grandes dores, mas como não poderia deixar transparecer a sua fraqueza, aguentou firme, ao lado do Carvalho.
         E continuaram, à passos largos. Era preciso lutar contra umas idéias que lhe vinham à cabeça! Havia de encontrar o amigo Rodolfo e os índios Anuamãs, localizaria, junto aqueles homens, o território ocupado por eles, e com a sua volta, ele e Esthela, poderiam viver da maneira que sempre sonhou, comandando a Reserva de Itaúna, como o Superintendente havia lhe falado..
         No mato as passadas vão pesando nas folhas, afundando na terra fofa e macia. Os soldados vão de cabeça baixa, Elias é o único que sabe o que o espera, procura cantarolar uma moda, para espantar os pensamentos de triteza. Henrique sente um buraco no estômago. E ainda era pior, porque teriam de montar as barracas, antes de poderem preparar a ração do dia.
         Vinha caindo a noite. Pesadas asas de morcegos começavam a roçar-lhes o rosto, numa alucinação trágica e sombria. Os galhos das árvores. que árvores? __ Aquilo eram árvores? Antes pareciam monstros pavorosos...  __ cresciam na sombra sobre suas cabeças, encerrando-os em misteriosas grutas escuras. As estalactites vegetais desciam na penumbra, assustando-os, tocando-lhes, de leve, as cabeças, como fantasmagorias.
         Em determinados trechos da floresta, sob as ordens de Elias, separavam-se os soldados, espalhando-se pela mata em volta. Logo estavam todo juntos novamente. Continuavam a marcha desanimadora, dentro da noite. Um piado esguio de ave escondida, abalou a  solidão da noite. Um ruído indistinto de animais invisíveis tomou conta da sombra. Os macacos chamavam. Carvalho e Henrique, tinham os músculos retesados. Como era cheia de ruídos a noite da mata! Como era monótono, e triste, e desolador, o ruído dos seus passos no chão recoberto de plantas entrelaçadas, e o bater, toque, toque, dos saltos do coturno, sob o peso das mochilas!
         Caminhavam a mais de quatro horas. Estava tudo tão escuro, que o farolete mal bastava para reconhecer a região. Caminhando em fila indiana, de repente ouviu-se um grito, vindo do final da fila. Todo pararam de chofre, então, virando-se para os lados de onde partira o grito. Alumiando a escuridão como faroletes, puderam ver a cena horrível que se desenrolou a frente deles. Miguel, um dos soldados do destacamento, havia sido atacado por uma enorme onça, seu corpo jazia no chão, meio encoberto pelas folhas. O animal horrendo, mantinha-se preso à garganta do pobre. De seus dentes pontiagudos, escorria o sangue quente e preto, do pobre diabo, subjugado.
         Elias tomando a frente, descarregou a arma em direção do animal, não conseguindo atingi-lo, devido ao grande reboliço que se dera a sua frente. A onça partiu em disparada, e a selva parecia se abrir, para a majestade passar. Ela era a rainha daquele lugar, sob a escuridão da noite, seus súditos lhe prestavam homenagens...
         Com a fuga da onça, Elias deu ordem para que seus homens se aproximassem da vítima...
         Miguel estava agonizante, sua garganta estava totalmente dilacerada, com a força descomunal da mandíbula da onça, ela quase separou a  cabeça do homem, de seu tronco. Em poucos minutos, ele estava morto.
         Pelo rádio, Elias informou a base, eram agora sete homens, entre eles, o Henrique, que inexperiente, aquele tipo de situação, afasta-se do grupo, sentindo ânsias. Apoiado a uma árvore, despeja sobre a terra úmida, os restos do almoço, que ainda lhe restaram.
         A caminhada prosseguiu, Elias pretendia chegar ao acampamento do Riachão, ainda naquela noite. Miguel fora cuidadosamente embrulhado num saco de lona, que os soldados elevaram, por meio de cordas, a uma forquilha no alto de uma árvore. Aquilo evitaria que o corpo fosse mutilado ou devorado, pelos animais que o encontrassem. Na manhã seguinte, ele seria recolhido pelo grupo de resgate, enviado pelo Coronel Amâncio.
         Depois de duas horas de caminhada, finalmente o grupo chegou ao que parecia ser o acampamento do Riachão. Os fardos pesados ficaram depositados no chão, do lado de fora da barraca. Elias e mais dois soldados, revistaram o local, e depois de certificarem-se de que o lugar estava seguro, deu ordens para que o grupo descansasse.
         Fazia frio lá dentro e quase nada se via. Carvalho sentia uma tristeza muito grande apertando-lhe o coração. Elias, mais decidido, deu ordens para que se acendesse uma fogueira. Logo, alguns soldados começaram a reunir gravetos para fazer uma fogueira, Elias acendeu um lampião à gás, pendurando-o bem ao centro da cabana.
         __ O fogo é bom para espantar os mosquitos. explicou.
         Henrique se pôs a ajudar, a dor no estômago aumentava.
         __ Vamos depressa, que eu estou morrendo de fome. confessou.
         Em pouco o fogo ágil subia pela escuridão, vencendo-a.
         E os soldados viram ali perto um riacho coleante, avermelhado pela luz.
         __ Tão pequenino o riacho, porque será que o Coronel o chamou Riachão? exclamou Elias.
         Mas isso não interessava a ninguém naquele momento. Os soldados tiravam às pressas da mochila, os utensílios e alimentos para o jantar, jogando a esmo pelo chão, as coisas que não tinham utilidade no momento.
         __ Vamos deixar tudo pra depois. Eu estou com uma fome danada. Primeiro, vamos satisfazer a pança. O dia já deve estar perto de clarear...
         Meia hora depois, estavam alimentados, os homens espalhados pela cabana, recostados às paredes, limpavam suas armas, juntavam seus pertences... Logo o grupo inteiro se entregou ao sono dos justos.
         O dia encontrou-os na mesma posição, espichados no chão de paxiúba da barraca.



VI


         O sol queimava as copas altas das árvores entrelaçadas, conseguindo por vezes varar a espessura dos tetos de vegetação e penetrando, fantasioso, nos recessos sombrios, que em pleno meio dia ignoram o calor e a alegria da luz solar. Era um correr impalpável de pequenos animais quase invisíveis, uma vida escondida e latente, subitamente tocada de um frenesi de susto.
         Carvalho limpou com a mão o suor do rosto e pousou o pé no tronco de um caiaué derrubado. Nas mãos trazia o facão, no cinto a pistola e o fuzil a tiracolo. O sol que se via por entre as frinchas da floresta, estava alto no céu. Deviam ser dez horas. Elias e o resto dos homens, esperavam-no para o almoço. Faltava pouco para terminar a busca determinada a ele. Percorria já quase toda a circunferência irregularmente traçada na selva pelas picadas, voltava para o barraco, encontrar os companheiros.
         De longe, um assobio espetou o silêncio da manhã quente e solitária. Era o chamado dos amigos, como de costume. Carvalho retomou o caminho, ansioso, sentindo já o prazer do feijão quentinho acompanhado dos enlatados fornecidos pela companhia, depois o café, tomado depois à entrada da cabana, em boa meia hora de conversa repousante.
         Era mesmo uma boa vida aquela, se não fossem os perigos...
         Assim que o Carvalho se aproxima do grupo, ouve a voz do Elias, nervosa e cheia de irritação:
         __ Estão faltando dois cadetes. Por onde é que se meteram?!...
         Durante as primeiras horas do almoço, nenhum dos dois cadetes, que o Elias se referiu, tornou a aparecer, tinham-se evaporado.
         Depois, recostados ao esteio da entrada, tapada por uma esteira de palha de ubi, Henrique e carvalho conversavam.
         Henrique, com o  chapéu tapando-lhe a vista cansada do esplendor solar, que vinha ali, batendo de rijo sobre as cabeças suadas, perguntou:
         __ Será que o Coronel, enviou a equipe, para apanhar o corpo do Miguel? pigarreando, tentando esconder a sua desconfiança.
         __ Acredito que sim, o exército brasileiro, não seria capaz de se eximir de culpa, num caso como esse. retrucou Carvalho, com veemência.
         __ E esses dois cadetes? Que será deles?...
         __ É o Anacleto e o Ribeira, vai ver, os dois se acharam pelo mato e resolveram comer por lá mesmo, ou então...
         __ Então o que? perguntou Henrique preocupado, lançando-lhe um olhar interrogativo.
         __ Pode ser que os índios...
         Carvalho ia terminar a frase, quando foi bruscamente interrompido por Elias:
         __ Deixem de conjecturas, os dois, são dois irresponsáveis, assim que retornarem ao campo, serão, amplamente punidos.
         Um silêncio sepulcral desceu por sobre o acampamento, o grupo agora estava reduzido a cinco homens. Elias, sempre confiante, deu ordens para que novamente se iniciassem as buscas, desta vez, mandou que o professor seguisse junto ao Carvalho, temia que algo lhe acontecesse.
         E cada um dos dois grupos formados, tomou o seu rumo, embrenhando-se na selva cheia de mistérios. Henrique ia assobiando. Os macacos pulavam assustados de galho em galho. Havia um chiado monótono, que vinha não se sabe de onde, proferido não se sabe por quais animais. Era talvez o conjunto de numerosos pios de pássaros diversos, disseminados nos interminais túneis de vegetação. Quanto mais se internavam na mata, mais o professor se deslumbrava. As piraíbas, mostravam seus dorsos enormes, passando no iagarapé ao encalço de trêfegos pacus. Sob largas palmas rastejantes, à beira limosa das águas amortecidas, surgia de vez em quando, o vulto asqueroso de um jacaré, de olhos entreabertos, gozando a digestão dos tambaquis abocanhados de surpresa. Henrique ia andando logo atrás do Carvalho, os seus passos acordavam frêmitos da floresta. Pulava cutias espertas e era, por vezes, uma revoada estonteante de jaçanãs e guarás. Seguindo as picadas dentro da mata fechada, os dois companheiros seguiam silenciosos, Carvalho, por vezes assobiava. De repente, como o esturro de uma onça longinqua, tomava conta do ar, a voz profética do sapo-boi, cantando no igapó. Um ou outro raio de sol, conseguia atravessar a mataria, vindo ferir de chofre a vista do professor. Era agora o entardecer, Carvalho e Henrique, nada encontraram, nenhuma pista, então só lhes restava, retornar.
         A noite, descendo rápida, violenta, como a querer apanhar o dia com violência e surpresa, para desfazer de um só golpe o seu esplendor e a sua luminosidade, fechou a terra inteira, num abraço sombrio. Um bando de tuiuiús passou assustado, asas espalmadas, procurando abrigo. Lá para as seis horas, quando Henrique subiu os degraus fronteiros da barraca, encontrou uma torturante surpresa. Estendido no chão de paxiúba da barraca, estava o corpo ensangüentado de Elias, completamente dilacerado por forças desconhecidas. Henrique recuou rapidamente, temendo um ataque, assim que se viram fora do rancho, Carvalho e ele deram uma busca em volta, nada, nenhuma pegada, nenhuma pista.
         De volta ao interior da choupana, Carvalho, mais experiente, examinou os ferimentos de Elias, com toda a experiência que possuía, não conseguiu identificar a autoria dos ataques. O corpo do Elias, estava totalmente dilacerado, seus membros foram cruelmente arrancados, sua cabeça, jazia ao lado do corpo, sem vida. Seus olhos, arregalados, ainda demonstravam o pavor, que ele deve ter sentido na hora. Sua língua fora arrancada e jogada a um canto da barraca. Era como se aquilo fosse um aviso.
         Desesperados, os dois companheiros deixaram a barraca, Carvalho ainda juntou os pedaços do oficial, depositando-os dentro do saco de lona, destinado a fatos como aquele.
         Sentados do lado de fora da barraca, com os nervos deteriorados pela emoção, os dois aguardavam a chegada, dos outros companheiros, que deviam estar ainda, internados na mata.
         __ Quem ficou com  o rádio? perguntou Henrique aflito.
         __ Acho que está com o Rosalvo, foi ele que assumiu as comunicações, quando o Miguel foi atacado pela onça...
         __ Mas onde será que se meteram o resto do pessoal, porque não apareceram ainda, o sol já se pôs, temos de tratar de acender uma fogueira...
         Carvalho notando a preocupação no tom de voz do professor, tratou de acalmá-lo, em seguida, saiu em busca de uns gravetos, para acender uma fogueira. Henrique acendeu o lampião à gás, ajeitando-o em uma árvore próxima ao barraco. Nenhum dos dois, pretendia dormir lá dentro, naquela noite.
         Assim que a fogueira foi acesa, os dois companheiros, que estavam famintos, colocaram um grande pedaço de carne para assar, esperavam que os outros, chegassem dali um pouco.
         A luminosidade do luar que se derramava sobre a terra, tornava ainda mais frágil o luzir dos vaga-lumes que perpassavam. Um rato-coró punha, de vez em quando, no silêncio cheio de ruídos imprecisos, uma nota de desolação e saudade. Aves inquietas, atraídas pela luz do lampião, vinham bater de encontro as paredes da barraca.
         Olhando para o céu descortinado ante as suas cabeças, Carvalho pressentiu a chuva que se preparava, então resolveram entrar na barraca. Com a ajuda de Henrique, o saco de lona, que continha os restos do Elias, foi arrastado para fora e colocado sobre um girau, que servia de bancada, aos pesquisadores que ali viviam.
         Nessa noite desceu sobre a terra uma cerração espessa. A temperatura baixou violentamente. s ventos galopavam pela floresta, recurvando-a, vencendo-a, entrando pelos tetos de palha das barracas dos caboclos, perdidas nas solidões da mata. A chuva acentuava as tristezas que se dissolviam pelas coisas.
         Tão intenso era o frio e tão áspera a ventania que Henrique acordou durante a noite, encarangado, no seu saco de dormir.
         __ Nossa Senhora! Parece que o mundo vem abaixo... Carvalho! Carvalho! Você tá dormindo?
         __ Estou acordado professor... Bem acordado...
         __ E a barraca, Carvalho? Será que não vai cair?... O teto já está desfalcado... É capaz da paliçada tombar, daí, tudo vai rolar pelo chão...
         __ Nada disso, a construção é boa. Muita chuva hem?! Nesse meses de maio e junho, isso é muito comum. É o frio, que dizem baixar dos Andes.
         __ E os outros companheiros?... Algum sinal?
         __ Nenhum, acho que não vem mais hoje... Devem estar acampados aí por perto... Vamos tratar de dormir, amanhã teremos um dia cheio.
         Mas, pela sua loquacidade, Henrique via que ele estava com mais disposição para conversar que para emergir novamente no sono.
         __ Acho que a gente pode conversar um pouco... Pra espantar essa tristeza que está dando na gente... Estou com frio, sabe? Acordei por causa do barulho que o vento está fazendo na galharia.
         Um silêncio se interpôs entre eles, varrido pela vaia incisiva do vento. Quatro e meia da madruga porém, quando os dois companheiros se levantaram, a chuva tinha cessado. A natureza estava indecisa, como se não soubesse ainda, que decisão tomar.
         __ Creio que os outros estão perdidos, o melhor que temos a fazer, é voltar para a Reserva...
         __ Não podemos fazer isso! exclamou o professor. __ E os outros, ainda não apareceram...
         __ Não importa, não quero deixar o meu couro aqui, no meio dessa selva traiçoeira...
         __ Espere um pouco, pense bem, como é que você vai voltar, com essa chuvarada toda, a terra está toda alagada?...
         __ E por que não? Um fuzileiro não tem medo de chuva. Vamos lá, pegue as suas tralhas e vamos embora.
         __ Não, eu não vou! afirmou Henrique. __ Eu vou ficar aqui, aguardarei pelo menos três dias, então eu voltarei, quem nos pode garantir que os outros estão mortos? Quem?
         Carvalho ouviu as palavras heróicas do professor, mas mesmo assim achou que eram da boca pra fora, ele sabia que o homem da cidade, haveria de seguí-lo, se tomasse a decisão de voltar para a Reserva. Então, cismado com a coragem demonstrada pelo professor, ergueu-se dizendo:
         __ Muito bem professor, junte a munição do coitado do Elias e se mantenha abrigado na barraca, assim que eu chegar a Reserva, voltarei com mais homens, para buscar o corpo dos outros, e resgatar os sobreviventes, boa sorte...
         Carvalho declarou tudo isso, rapidamente, no seu íntimo ele esperava uma reação diferente, por parte do professor, mas pelo contrário. Ele bateu o pé, e se manteve firme em sua decisão, não deixaria o acampamento, até que os outros retornassem.
         Tomando a sua mochila, sua arma e o facão, lá se foi o Carvalho, na escuridão da madrugada, com a lanterna presa ao capacete. O dia raiou com medo, havia certa ironia esparsa na natureza. A própria voz dos animais, dos pássaros amedrontadados, parecia rir dos esforços daquele homem.
         Henrique, por sua vez, permaneceu sozinho naqueles ermos da selva, esperava ansioso, pela volta dos três companheiros que se mantinham ainda, internados na mata escura.
         Recostado à parede de paxiúra da barraca, Henrique analisava a situação em que se encontrava. Temia que o seu ato de coragem, tivesse traçado para ele, um destino igual ao dos outros companheiros. Revirando os bolsos da jaqueta, a procura dos cigarros, ele encontrou o mapa, enviado pelo amigo Rodolfo. Naquele momento, um estalo, lhe trouxe a realidade, levantou-se ligeiro do lugar em que estava e correu a porta da barraca, onde gritou com todas as forças de seus pulmões, chamando o Carvalho de volta.
         Como a pressa sempre acompanha o medo, Carvalho se distanciou rapidamente do acampamento do Riachão, não ouviu o chamado do professor que deixara para trás. A sua frente, muralhas de vegetação, pareciam querer engoli-lo, por mais que caminhasse, parecia-lhe que não estava avançando. Tinha passado por ali, em menos de cinco dias, e o mato já estava quase lhe chegando a cintura. Era a chuva, pensava ele.
         Vendo que nada adiantava chamar o amigo que partira, Henrique voltou a sentar-se, e agora examinava atenciosamente o mapa, estendido a sua frente. Tomando-se a Reserva como ponto de partida, o caminho traçado no mapa, identificava-se com a trilha que os levou até o Riachão, desenhados no mapa, haviam pontos de referência, que combinavam, com tudo o que tinham encontrado até ali. Dessa forma, Henrique acreditou que estavam mesmo no caminho certo, agora, só lhe restava aguardar a volta dos companheiros, ele sabia a direção exata a seguir. Como não pensara naquilo antes?...
         O dia inteiro se passou e nada dos companheiros aparecerem, a noite caiu sobre a terra, espalhando sua sombras traiçoeiras, por sobre as muralhas de vegetação. À noite, sempre trazia ao professor, lembranças idas, de um passado aventuresco, vivido no Estado do Paraná. As expedições que tinha realizado na Serra do Mar, os meses que passou isolado no meio da mata... Era-lhe agradável viver dessa forma, mas ali, guardava um receio jamais sentido. Um medo, incontido, inconfessável.
         Durante a noite, o céu debulhou-se, transformando-se em uma tremenda tempestade. Os ventos uivantes, arrancavam, aqui e ali, as galhadas, que sustentavam a barraca, antes mesmo de amanhecer, Henrique resolveu que seguiria sozinho a trilha, desenhada no papel, localizaria o prisioneiro e retornaria para buscar ajuda. Certamente, esse seria um ato de bravura, frente aos “Grandes”do IBAMA, isso sem contar no pessoal do exército. Resolvido a seguir em sua aventura, sem pensar muito nos perigos que o aguardavam, Henrique se preparou para a longa caminhada, Juntou todas as coisas que poderia carregar, e como duas armas, lhe seriam muito pesadas, escolheu a que pertencia ao Elias, uma submetralhadora, além de ser mais leve, poderia contar com a pistola, que seguia em seu cinto.
         Henrique meteu o pé com coragem na lama que se misturava às folhas do caminho. Aqueles tênis grossos de montanhismo, que o pessoal de campo do IBAMA, lhe tinham recomendado, não deixavam passar a umidade. Estava bem defendido, o café quente no estômago, a gola do casaco fechada no pescoço, o espírito forrado de um otimismo vencedor. As vezes o frio atravessava o grosso tecido da jaqueta do exército, penetrando-lhe no corpo, mas logo ele retesava os músculos, decidido a lutar. “Vamos vencer a natureza”, pensava ele...
         Dentro dos túneis compridos que a luz fosca do dia baço não atravessava, a semi-obscuridade impedia-o de vislumbrar os pontos referidos no mapa. Quando julgava ter-se aproximado de um, esbarrava em outra árvore, por vezes, completamente diversa, que no entanto tomara a seus olhos, o aspecto da figueira que ele procurava.
         __ Ah! Bem que o Rodolfo me disse... Isso é coisa da natureza, que gosta de iludir a gente, escondendo suas filhas árvores, no meio da mata.
         E recomeçava, forçando a vista, na escuridão, esbarrando nos galhos, cortando a pele em tiriricas imprevistas, assestadas contra ele. dava, enfim, com a árvore procurada. Então, contente e esfuziante, retirava o mapa do bolso, e demarcava a figueira, buscando já no mapa, a próxima referência.
         A luz da lanterna presa ao seu chapéu era insuficiente quase para penumbra da subfloresta. Lá por cima devia haver já luminosidade, talvez ainda uma luz discreta, coada a custo entre as nuvens pesadas. Henrique ia andando, pelas picadas, parando a cada instante, a procura do próximo ponto de referência, desta vez, um grande jatobá. O pensamento andava-lhe longe, pensava em Esthela, lá em Manaus, aguardando com fervor, o dia em que mudariam para Itaúna.
         Se ele pelo menos conseguisse localizar o Rodolfo, os Anuamãs... O ouro que se dane, o Estado que pense nisso... E o pensamento corria diante dele, solto, em dias melhores, em cenas já vividas ou por viver, quando repentinamente o sangue lhe gelou nas veias. O coração desandou a bater descompassadamente. Que era isso que o agarrava pelo casaco, que o prendia, que o retinha naquele recanto escuro?
         Ai! nem coragem tinha de voltar a cabeça, e ver que inimigo terrível o segurara. Então o baque: Tum! E, tudo escurece e ele se deixa cair por sobre as folhas secas que cobrem o chão da picada.
         Henrique ficou uma boa meia hora atordoado, no entrechoque das forças espirituais desencadeadas. Quando recobra totalmente a consciência, está preso entre os Anuamãs.
         Jogado a um canto da choça, o corpo do professor se encontra amarrado, junto a um Jupiazeiro, fincado para esse fim. A frente dele, está o amigo Rodolfo, muito machucado, tentando falar-lhe. Apesar de consciente, Henrique não consegue ouvir o que o amigo tenta lhe dizer. Seus ouvidos permanecem surdos, com os olhos engaseados, Henrique busca dentro da choça, um ponto de apoio, para erguer-se. A força da bordunada, prejudicou-lhe a audição, por mais que ele tentasse ouvir as palavras de Rodolfo, não conseguia. Foram dias de agonia, no silencio interior e circunspecto de sua alma. Henrique conversava, mas, nem sequer conseguia ouvir a sua própria voz.
         Os anuamãs não eram grandes, tinham estatura mediana. Andavam completamente nus e pintavam o corpo com urucum e carvão. Mantinham a pele, totalmente coberta, por uma grossa camada de barro, proveniente das barrancas do rio. Aquele, era um método bastante eficaz contra o ataque dos insetos, que abundavam na mata obscura da Amazônia.
         Durante os três dias que Henrique permaneceu entre a vida e a morte, uma índia Anuamã, o alimentou com raízes e peixe. Ele se sente fraco, exaurido, as forças que ainda lhe restam, usa-as para levantar-se, nos momentos de solidão, para tentar travar assunto com o Rodolfo, que se encontra na mesma situação à sua frente.
         No quarto dia, um dos silvícolas lhe aparece pela frente, pela escolta, puderam notar que se tratava do cacique. Seu corpo musculoso, envolvido por uma grossa camada de barro, ganhava a tonalidade vermelha, das barrancas do rio. Sua cabeça, coberta de cabelos negros e lisos, cortados rentes às orelhas, davam-lhe o aspecto, de estar usando uma cuia, a guisa de chapéu. Seu rosto escarificado com desenhos múltiplos e angulandos, davam-lhe um ar sombrio. As penas e adornos, estrangulados pela pele das orelhas e beiços, acentuavam-lhe um ar de majestade. Os espinhos, fincados com maestria no grande e chato nariz, assemelhavam-se aos bigodes da grande onça pintada. Essa alegoria gigante, ereta e ameaçadora, em frete ao corpo ferido e maltratado de Henrique, causava-lhe uma grande comoção.
         O selvagem tentou de todas as maneiras se comunicar com o homem branco, mais não obteve respostas às suas perguntas, ele não os entendia, isso o deixava frustrado. Henrique pensou, que se tivesse ali, um dos pesquisadores do IBAMA, ou um representante da FUNAI, quem sabe, conseguiriam algum sucesso.
         Diante da apatia dos prisioneiros, o grande chefe deixou a maloca, Henrique e Rodolfo continuaram prisioneiros. Lá fora, o movimento era intenso, por entre as paredes da maloca, os dois maltrapilhos podiam ouvir os gritos e a cantoria dos índios. Aos poucos eles sentiram a noite cair.
         A índia que sempre lhes trazia o que comer, entrou na maloca, com um enorme feixe de lenha na cabeça, jogou-o no centro da choça e principiou a acender uma fogueira. Para isso, deixou novamente a cabana e logo em seguida, retornou, trazendo um braseiro, numa casca de árvore. Ajoelhada em frente ao braseiro, a índia se debruçou e com baforadas prodigiosas, levantou faíscas da brasa, incendiando os gravetos que depusera por cima. Logo o fogo ardia dentro da loca, aquecendo o corpo dolorido dos dois prisioneiros. A noite se transcorreu longamente, lá fora, o grito aterrador dos Anuamãs, misturados ao ruído incessante da mata, traziam o medo e a desconfiança para junto dos dois companheiros ali encerrados.
         Com a aproximação da madrugada, o silêncio foi tomando conta da aldeia. Somente o ruído intermitente da floresta, era ouvido. Rodolfo que acordara naquele momento, buscava tocar os pés do companheiro, para tentar acordá-lo. Esticando-se o mais que pôde, conseguiu enroscar-se nos pés do outro, então, com um pouco mais de esforço, conseguiu, com que o Henrique acordasse. Apesar de acordado, Henrique não conseguia entender o que o amigo lhe falava, estava completamente surdo, por causa da bordunada que tinha levado. Olhando então os gestos que Rodolfo lhe fazia, descobriu a intenção do amigo. Ele pretendia fugir no meio da noite.
         Forçando as amarras de embira, feitas pelos selvagens, Rodolfo conseguiu livrar uma das mãos, o silêncio era imperativo, na porta da loca, dormia um guerreiro, se ele os visse tentando escapar, certamente lhes partiria os ossos, a custa de bordunadas. Após livrar uma das mãos, Rodolfo trabalhou cautelosamente na segunda amarra, naquela que lhe prendia a outra mão. Assim que se viu livre, acorreu ao amigo, livrando-o das amarras que o prendiam. No silêncio da noite, os dois companheiros deixaram a loca, saindo pela parede de palha, que a cercava.
         Depois de estarem fora, no terreiro da aldeia, trataram de correr em direção à mata fechada. Nem coragem tinha de voltar a cabeça, para ver se algum dos índios os seguiam.  Nesse momento, uma risada sarcástica ecoa pelos recôncavos da floresta. Henrique tem a pele arrepiada, os cabelos eriçados. A carne porém, se lhe endurecem, seus nervos se enrijam, somente nesse momento, ele percebe, que está ouvindo tudo ao seu redor. Seu espírito reage num último assomo. Não! Não há de morrer ali, naquele terrível momento, não há de ali ficar, perdido para sempre, sepultado na sombra e no esquecimento! A de voltar para a sua amada... Há de voltar!
         E de um arrancão, safa-se de uma vez, das mãos de Rodolfo que o seguram, na ânsia de socorrê-lo. Sai como doido pela floresta. Atrás dele os carões parecem chamá-lo, saltitando e enrolando-se nos galhos. Seus pés afundam no chão fofo. Já é a custo que corre, o coração disparado, a alma ausente, como um corpo rolando perdido na amplidão.
         Henrique estaca por um momento, buscando desesperadamente o ar, em golfadas poderosas, nesse momento ele nota que está só, Rodolfo não está mais ao seu lado. E de novo reboa na mataria, os gritos mordazes, impenitentes, selvagens, dos índios que certamente o estão perseguindo. Num derradeiro esforço, Henrique avista uma saída da prisão verde e embarafusta-se por ela. É com alívio que vê o sol, surgindo medroso, rasgando com precaução as nuvens altas. É com imenso alívio que sai do pesadelo, que vem para vida, que volta a ter consciência das coisas presentes e tangíveis. E ali mesmo cai sentado na terra, exausto, gotas de suor gelado escorrem-lhe pelo corpo. Que susto! Enfim está livre.
         Certamente os índios se esconderam nas sombras, quem sabe já vão atrás de outra vítima, no recesso da mata. Lembra-se então de Rodolfo. Tinha chegado tão perto de salvá-lo... Porque ele não o seguiu?... Porque? ...
         Os gritos selvagens, vem ainda soar estranhamente a seus ouvidos. Mas agora, causam-lhe impressão diferente. O sol parece que o anima, que o acompanha e, esquentando-o, lhe explica que o seu medo  não teve razão de ser.
         Naquela mata, tudo se reúne para investir contra o homem. E tudo luta contra tudo, num combate silencioso, mas tenaz, constante e absorvente. Tudo se destrói, tudo se renova. Tudo mata para se alastrar.
         Henrique ficou uma boa meia hora atordoado, no entrechoque das forças espirituais desencadeadas. Pela primeira vez pressentia as coisas, imaginava dramas nunca vistos, sentia o hálito tremendo desta dantesca boca da floresta, de onde podem sair todos os monstros e que pode vomitar todas as calamidades.
         Recuperado parcialmente das emoções que se lhe abateram, ele procurou fazer um levantamento do que dispunha. Revirou os bolsos da jaqueta, encontrando os cigarros e o isqueiro, além disso, encontrou um canivete suíço, daqueles de mil e uma utilidades. Mais nada, além disso...
         Henrique então se largou pela mata a fora, seguia os seus instintos mais animalescos, procurava interminantemente, pela água, que ali, sempre havia em abundância. Por três dias ele vagou incessantemente pela selva, munido apenas de um canivete suíço e uma longa vara, a guisa de lança, que ele esculpira, de um galho de cedrinho. A fome estava lhe torturando os intestinos, sua barriga doía... Havia comido apenas alguns frutos que encontrou esparsos, pela floresta, até que finalmente chegou a beira de um igarapé.
         Novamente as esperanças de sobrevivência, foram renovadas, ele sabia, que onde existia água, existia vida, havia animais, peixes... Próximo ao igarapé, encontrou um açaizeiro, e foi justamente dele, que Henrique retirou as forças perdidas. Depois de derrubar um grande cacho, saboreou os deliciosos frutos, comeu o que pode, até sentir-se satisfeito. Ao final da refeição, verificou que tinha quase devorado o cacho inteiro de açaí.
         Descansado em sem receios, Henrique recostou-se ao pé de açaí e contemporizou a paisagem que tinha a sua frente, o igarapé, a mata em volta... O que não daria para ter ali, uma foice, ou um facão... A tarde, já bem descansado, resolveu seguir caminho, julgava que a melhor solução no seu caso, seria seguir à margem do igarapé, esse, certamente o levaria a um rio, e este, ao Purus, d Purus, seria fácil chegar a Reserva Bom Futuro. Mas, a caminhada ali, `margem do igarapé, estava se tornando por vezes muito perigosa, havia muitos jacarés ocultos, nas folhagens da margem, resolveu então, seguir ao lado, numa distância calculada, para evitar esses encontros.
         A mata fechada, por vezes lhe obrigava a fazer um verdadeiro só de contorcionismo, tantos eram os cipós, tantas eram as árvores e os espinheiros. Quando naquela tarde ele se deparou com uma muralha impenetrável de espinheiros, quase desistiu de sua empreitada. Os espinhos feriam-lhe a pele, rasgavam suas roupas, mas eram bem menos perigosos, do que os jacarés, traiçoeiros. Quando finalmente ele conseguiu derrubar uma pequena árvore de arandiróba, para fabricar uma espécie de borduna, para abrir caminho entre os espinhos, ele notou, que logo atrás da muralha de espinhos, havia uma picada. Não era recente, mas por precaução, ele abriu caminho à pauladas, e só depois de certificar-se de que não havia sinal de inimigos, pegadas, rastros... resolveu seguir por ela.
         As árvores ao lado da picada, uniam suas copas, formando um longo túnel, úmido e escuro, os raios esmaecidos do sol da tarde, penetravam-lhe na muralha, vez por outra, arrancando um arrepiozinho da pele dolorida do professor de história. Henrique caminhou por essa trilha, até o sol sumir-se por completo, era noite quando ele avistou numa clareira bem a frente, um arremedo de palhoça. Imediatamente ele se internou na mata, cuidadosamente ele se aproximou, temia encontrar novamente os Anuamãs. Na escuridão petrificante da noite, ele se aproximou lentamente da choça, e procurou escutar entre a miríade esparramada de sons da floresta, um ruído que denunciasse a presença de um índio, ou pessoa, se assim Deus quisesse. Nada se mexia a sua frente, somente os sons da floresta, zumbiam intermitentemente nos seus ouvidos, mais uma vez ele recomeçou a aproximação, quando se viu praticamente atrás das paredes gastas da choupana. Estacou novamente. Aí permaneceu por uma boameia hora, a fim de escutar os sons provenientes da tosca moradia. Nada ouviu, somente os sons fantasmagóricos emitidos pelos sapos, internados no banhado, ao lado do igarapé. Resolvido a não se deixar apanhar, Henrique encheu seu espírito de coragem, com a borduna na mão, avançou pela escuridão, em direção da barraca, somente a luz prateada do luar, se desmanchava por sobre o lugar. A choça estava vazia, abandonada. Um suspiro de alívio, relaxou os músculos retesados do envelhecido professor.
         Juntando um feixe de palha seca, que se espalhava pelo chão da barraca, Henrique acendeu uma fogueira, logo a claridade das chamas, iluminaram o abandono e a destruição em que se encontrava aquela moradia. Pelas paredes de taipa, Henrique pode observar a ação do tempo, o telhado de palha, há muito que necessitava de reparos, buracos enormes, deixavam à mostra, o veludo do céu, incrustado de estrelas, que piscavam vivamente, como a dizer: “Estamos aqui, olhando por você”. Henrique estava cansado, como a choça era bastante alta, não se preocupou com o possível ataque de animais rasteiros, depois de alimentar o fogo, recostou-se à parede e adormeceu quase que imediatamente.
         Na manhã seguinte, Henrique verificou que era um domingo, já faziam dez dias que ele estava perdido naquela selva. Com a luz do dia, a paisagem decrépita, que se descortinou a sua frente, angustiou-o. Ele não sabia quem poderia ter construído ali, aquela barraca, nem por que motivo, mas graças a ela, ele estava salvo. Seu estômago reclamava por comida, olhando pelas frestas da parede, Henrique avistou o igarapé logo a frente, ele sabia que o lugar era repleto de comida, mas ele não dispunha de armas, conhecia alguns truques, quem sabe...
         Decidido, deixou a barraca e entrou mata a dentro, procurava pelos paus de aninga, ele havia aprendido isso, com um caboclo cearense, que trabalhava na Central. Era tiro e queda, e na falta de outra coisa, uma carninha de jacaré assado, não é nada mal... pensou ele.
         Logo ele estava de volta, trazendo uns grandes paus de aninga, para matar jacarés. Logo, estava ele debruçado à beira do igarapé, aguardando o ataque dos anfíbios, bem no lugar onde os vira abrigar-se, sob as largas folhas dentadas. E ei-los que se aproximam, horizontais, fleumáticos, os pequeninos olhos revirados, espalmados na água turva, chegando-se sorrateiros, na eminente investida à presa distraída. O coração de Henrique dispara ante o perigo, mas tem de fazer tudo, da maneira como lhe fora explicado, não pode falhar. Então, aguarda na margem, o coração pequeno. Henrique estende a mão. O jacaré parece alheio ao que lhe passa em torno, lembra antes, um cadáver, deslizando sobre a corrente. Vem quase debaixo d’água, para iludir melhor. E hei-lo, que investe contra a mão de Henrique esticada em direção ao rio, com a boca totalmente escancarada. O braço ligeiro de Henrique, lhe mete rapidamente, goela a baixo, o pau de anhinga. Furioso o animal debate-se , vira de costas, revira-se, luta com a terrível presa que o prende. Tem os dentes, irremediavelmente presos ao pau elástico, vira-se e revira-se, está preso. Outros surgem, na sombra, igualmente mudos, preparando do mesmo modo, uma traição repentina. Novos paus de aninga se lhe atravessam na garganta. Agora um turbilhão de espadanadas, se desenvolve dentro do igarapé, infelizmente Henrique não pode arrancá-los dali, antes que morram. Henrique se levanta e vê a tortura dos traidores traídos, ouve com assombro os seus gemidos alucinantes. Levanta-se e se afasta, deixando os monstros batendo-se  em rabanadas, numa luta exaustiva e inútil.
         Amanhã estarão mortos! pensou ele. Poderei comer a sua carne por vários dias. Mas a fome que lhe aperta na barriga, não pode esperar, munido da borduna, caminha lentamente pela orla do igarapé, oculto pela ramagem, ele se aproxima lentamente de uma despraiado, onde uma anta, descansa ao sol, protegendo o seu filhote. Henrique sabe que tem de se aproximar contra o vento, dessa maneira ele irá evitar que os animais lhe sintam o cheiro, arrastando-se por entre a vegetação, aproximou-se cerca de três metros, e assim que notou, que a anta já pressentia a sua aproximação, de um salto partiu para cima dos animais, não oferecendo a eles tempo, para fugirem pela água. Quanto a mamãe anta, ele não pode fazer nada, acabou por acertar-lhe apenas de raspão, mas o filhote, acabou se atrapalhando e quando mais uma vez tentou seguir a sua mãe, Henrique desfechou-lhe um golpe certeiro, entre os olhos. O filhote se deixou cair ali mesmo, a vida deixou o pequeno corpo do filhote, em estertores de dor. Henrique, apesar da necessidade, não se sentiu orgulhoso em tê-lo feito. “Era eu ou ela” pensou...  A presa era pequena, não tinha mais de dez quilos, mas a necessidade faz o homem. Após, com muita dificuldade, ele retirou-lhe o couro. A lâmina do canivete era pequena, não lhe oferecia outras opções. Cortou-lhe em pedaços e sapecou-a ao fogo, saboreando o gosto acre, da carne de caça.
         Terminada a refeição tão parca, Henrique sentou-se um instante, fazendo prognósticos para o decorrer dos próximos dias. Ele tinha de continuar a procurar uma saída, tinha de seguir pelo igarapé, até encontrar o rio. Mas, sentia-se fraco, cansado, temia enfrentar de novo a floresta, e, enfrentar seus inimigos naturais.
         De repente, na barraca correram ratos, esvoaçaram baratas, vindas não se sabia de onde. Imediatamente Henrique se colocou de pé, sabia que algum perigo estava a se aproximar, tinha de agir rápido. E, então ele ouviu, quebrando o silêncio habitual, um chiado que se aproximava, crescente, como se o exército viesse pisando por sobre as folhas secas, imenso, terrível, devastador.
         __ Minha Nossa Senhora! gritou espavorido. __ São as malditas formigas!...
         E, tomado de verdadeiro pânico, pôs-se a fechar a entrada da barraca. O ruído lá fora era descomunal. O bater das asas dos pássaros que fugiam, os guinchos dos macacos e os gritos de todos os animais que corriam alucinados, o barulho dos gravetos partidos, tudo isso se confundia, com aquele chiado sempre crescente, e agora, enorme, poderoso, onipresente...
         Henrique já ouvira falar a respeito das saca-saias, elas ganharam esse nome, por causa de seus freqüentes ataques, nas barracas dos ribeirinhos. Mulher, ali na região, não usa nada além das saias e da blusa. Assim que elas vêem as formigas chegando, tiram tudo, blusas, saias. Ficando nuas, as formigas não entram pelas roupas, nem atacam tanto. Elas ficam imóveis, procurando não se mexer, durante o tempo em que eles permanecerem na casa.
         E quando Henrique começa a tirar as suas roupas, as saca-saias irromperam subitamente a barraca, não lhe dando tempo de tirar o resto das roupas. Henrique viu, horrorizado, cem, duzentas mil formigas pretas, investindo contra ele, contra tudo, entrando em cerradas fileiras, atapetando tudo, enchendo todos os recantos, avolumando-se como se formassem um único monstro volumoso, que crescesse diante dos seus olhos . Seu primeiro impulso, ao vê-las subindo pelo seu corpo, foi bater-se contra elas, mas diante do tapete negro, espesso e imenso que se aproxima, manteve-se ereto, as mãos espalmadas ao lado do corpo, parecia uma estátua. Nem seus olhos mexiam, manteve-o estáticos, o suor, escorria-lhe, gelado pelo corpo. Estava como petrificado . As formigas atacaram-no já, , subiam-lhe pelas pernas, pelo rosto, por todo o corpo. Logo, Henrique estava parecendo um duende preto e peludo, da floresta. Ele sentia aqui e ali uma ferroada, mas mantinha-se firme, se esboçasse o menor movimento, elas acabariam rapidamente com ele. Por entre a frincha dos olhos, ele observava a cena, aterrado.
         A barraca estava toda escura, coberta de espécie de rama negra que se movia ininterruptamente, substituindo-se sempre. Era um chiar constante, desatinado. As formigas atropelavam-se, corriam como endoidecidas, à procura de um pasto que não encontravam. Disputavam-se a primazia de subir pelas pernas do homem. Até a palha do teto elas cobriam, escureciam, emprestando a tudo uma vida extraordinariamente móvel. Rangiam como tomadas de súbito acesso de raiva. investiam. Furavam, atravessavam as menores frinchas. Henrique sentia a pele queimar-se por debaixo da pele negra e movimentada que o cobria. Ele não soube quanto tempo durou o combate. Súbito, inexplicavelmente, diminuiu a intensidade.  E, a nefasta horda negra, intercalou-se pela porta aberta, pelas frestas da parede, esvaindo-se, desaparecendo aos poucos.
         Quando tudo clareou, as paredes do barraco voltaram a sua nudez primitiva, Henrique se deixou cair no chão, atordoado, tinha o corpo em fogo. Ele arrastou-se até a porta, para verificar se elas tinham mesmo ido embora. O chiado ia diminuindo, a distância. Pássaros piavam aflitos. Henrique tinha o rosto entre as mãos.
         __ Meu Deus do Céu!... O que mais vai aparecer para me atacar!?...
         Temendo ainda o regresso das saca-saias, Henrique se arrastou em direção ao despraiado, na beira do igarapé. Era perigoso entrar na água, havia ali, muitas piranhas e poraquês, os famosos peixes elétricos, que soltam descargas horríveis. Dessa maneira, Henrique lançou sua jaqueta na água, ensopando-a. Ele parou de gemer ao contato frio da água, que escorria pelo seu corpo, da jaqueta ensopada.
         Ficou ali um bom tempo, comprimindo a jaqueta molhada pelo corpo torturado pela formigas. Só mais tarde, depois que as dores serenaram, é que ele resolveu voltar para a barraca. O contato da pele, com as roupas encharcadas, lhe trazia um grande alívio. Não havia lugar em seu corpo, que não tivesse as marcas da saca-saias, toda a sua pele, parecia-se com o couro verruguento dos jacarés.
         Foi uma noite lúgubre aquela, em que o infeliz passou em claro, sentindo um enorme vazio no estômago, pois, o resto da anta que tinha reservado para a noite, as malditas formigas, devoraram.
         __ Meu Senhor!... Agora, ainda pra ajudar... A escuridão! O que é que me falta avançar?
         A muito custo ele tentou acender uma fogueira, mas as dores atrozes, lhe impediam os movimentos. E caiu extenuado, quase sem respiração. O corpo ardia-lhe, a cabeça pesava-lhe, o estômago, absorvia-lhe todo o organismo, doendo, com um enorme vazio que não havia como preencher.
         Pela manhã, a custo, morto de fome, desfigurado, com a pele crostosa, como a do jacaré, ele lembrou-se dos jacaretingas que tinha apanhado com os paus de aninga. Estariam mortos?...
         Estava todo vermelho, intumescido e tinha febre, mas mesmo assim, ele encontrou forças para seguir até o lugar onde havia atacado os jacaretingas, queria saber se tinham morrido. Mas ainda nada. Continuavam assoberbados, em desespero, retorcendo-se, lutando com os paus atravessados na boca. Henrique não podia esperar a morte dos bichos, tinha que apressar mais as coisas. Tomando então da Borduna, partiu desvairadamente para cima de um dos jacaretingas que se debatiam à sua frente, era impossível entrar no igarapé, mas da barranca, ele acertava as bordoadas na cabeça do horrendo animal, a luta entre os dois durou por mais de meia hora. Somente quando o sangue, grosso e negro, espirrou longe, nas águas barrentas do igarapé. Isso atraiu mais alguns traiçoeiros, que rapidamente se atiravam para os lados, de onde provinham as lanhas de sangue fresco.
         Com desespero, Henrique via todo o seu esforço, sendo carregado para o fundo do igarapé, se não agisse rapidamente, o jacaretinga abatido, seria inteiramente devorado pelos seus companheiros, as piranhas já principiaram por sobre a sua carcaça. Num ímpeto de coragem, Henrique se lança à margem, e, agarrando a carcaça do réptil agonizante, puxa-o para fora do igarapé. Os outros adversários, com suas bocas enormes entreabertas, avançam, disputando com ele, o banquete ensangüentado. Naquele momento a luta pela sobrevivência, invade o corpo maltratado do jovem professor, seus dedos se rasgam, com o esforço. Enquanto de um lado, ele luta, para afastar-se da margem, do outro, os famigerados jacarés, tentam impedir que o banquete, lhes seja roubado.
         Distanciando-se da margem, Henrique sentiu um grande alívio, quando viu, que os grandes répteis, haviam desistido de perseguir o almoço. Ele quase viu o alimento inanimado, fugir-lhe das mãos, grande parte do rabo, do animal, havia sido mastigada, era a parte mais saborosa...
         Acesa a fogueira, ele depositou os grandes nacos de jacaré  por cima de uma galhada para que assassem, deitando ao lado, para esperar. O cheiro do jacaré assando no fogo, causava vertigens ao pobre doente. O dia passou-se doloroso, arrastado, com desânimo. A noite caiu depressa, como tudo na floresta, não havia como fazer luz. Henrique então, lembrou-se de sistema que tinha aprendido, certa vez, no mato. Tomando um pedaço do cadarço de seu sapato, embebeu-o na graxa, liberada pela gordura do jacaré que assava. Envolvendo-o entre folhas, manteve apenas uma pequena ponta, para fora. Em seguida, recolheu toda a graxa que se desprendia da carne do jacaré que assava, aproveitando a gordura, das partes impróprias à alimentação, derreteu-a, obtendo graxa suficiente para manter uma pequena chama. Logo a luz se fez, avolumou-se, iluminando toda a barraca.
         Ainda esta noite, o vento murmurou palavras estranhas, levantando as folhas de palmeira que tapavam a porta, fazendo irrupções na barraca, alargando as frinchas no teto. No jantar, comeu mais um grande naco da caça. Não foi possível tirar o outro jacaré morto, porque os poraquês aí pululavam.
         Na manhã seguinte, apesar das dores intensas que sentia, a pele queimando-lhe, Henrique resolveu que era hora de ir em busca de auxílio. E lá se foi ele, assobiando alto, para espantar um certo mal estar medroso, que dele estava se apossando, e para esquecer a fome... Ia disposto a matar tudo o que se movesse, tudo que tivesse vida diante dele para comer.
         __ Terra maldita! ia pensando. __ Nem fruta, nem flores, só esse verde... Verde por todos os lados... A gente acaba ficando maluco com isso... Até as águas são verdes... Os jacarés...
         Chegando à uma grande samaumeira, Henrique estacou, emocionado. Nela havia sinais recentes de facão, havia inscrições, feitas a canivete. No chão recoberto de folhas, ele reconheceu o lugar onde uma fogueira foi acesa. Restavam-lhe ainda, os restos de gravetos, chamuscados pelo fogo. Ia, em fim, lançar o seu apelo, aos companheiros distanciados na floresta. A gigantesca umbela da árvore de tamanho descomunal, desdobrava-se por sobre as outras, num gesto grandioso de proteção e vitória. A sombra que projetava era imensa, fresca e úmida. Os tocaris, as jacitaras cheias de espinho, as carnaubeiras graciosas e as romãzeiras desapareciam, modestas perto dela, em gestos discretos de aias dedicadas.  Seguindo sempre pela picada, aproxima-se de uma área vasta de sapopemas, que se abriam em amplas cavernas, onde se entrecruzavam, em medonha desordem, toda a sorte de cipós, plantas exóticas e ervas rasteiras.
         Henrique sabia que a sapopema, era usada como uma espécie de telefone, na selva, todos os caboclos amazonenses, conheciam essa sua, utilidade. E com a borduna, bateu nas sapopemas, repetidas vezes. Por um momento, em suspenso, aguardou silencioso, a resposta. Mas, só lhe chegava, de volta, devolvido pelas distâncias indiferentes, o eco amortecido de suas próprias pancadas. Henrique insistiu, esperava ouvir resposta ao seu chamado. Chamou, chamou. E eis que de longe, de muito longe, um som lhe responde, vem através das solidões como um ser invisível e intangível, trazendo-lhe o alento de novas esperanças. Sim, alguém o ouvira, alguém lhe responde. E assestando mais o ouvido, o professor ouve atentamente... É o som afastado, longínquo, quase morto pelo atapetamento da mata verdejante. apagado quase pela macieza da floresta recheada de plantas, de musgos, de lianas, de mistérios... É o som quase morto, distante mesmo, mas é o som. O som que ele conhece, que já ouviu mais de uma vez,  Ainda há esperança para quem quer viver!...
         E, Henrique, põe-se a andar, a andar... Vai como um louco, sem ver a grandiosidade do cenário que o cerca. Nem sente os espinhos do tucumãi que lhe rasgam os tornozelos. Nem ouve a fuga apressada dos camaleões, o esturro das pumas que a galharia esconde e o chilrear alegre e em constante farra dos periquitos. Nem sente mais, a dor e a queimação, causadas pelo ataque das saca-saias, nem a dor que lhe parece torcer o estômago, que se esvazia. A fraqueza parece querer paralisar os seus movimentos, mas ele nem se dá conta. Corre como um louco... Num sombrio igapó, encastoado na selva com a pupila estática de uma víbora prostrada, nem vê as pernaltas frágeis, de longos bicos e alvas penas, suspensas sobre um único pé. Não vê os braços verdes estendidos, que ostentam maravilhosas catléias, não atenta as orquídeas, não ouve o si-si-si-si dos nostálgicos jacamins. Vai como um louco...
         E é já apenas o instinto que o guia. Abre furos na ramaria que o agride, perde-se, busca-se , torna a encontrar-se . E tudo é verde em volta, verde, verde, desesperadamente verde... Após marchar três horas, como um duende, garantido apenasmente por sua força tenaz, sem um alimento no estômago, já sem pensamentos no cérebro desertado, tendo apenas uma zoada infernal nos ouvidos ocos, Henrique desemboca afinal nos cem metros roçados, onde se ergue uma tosca choupana. É a hora do almoço. Seis companheiros estão no alpendre da barraca. Há uma exclamação de surpresa ao vê-lo surgir. Mas Henrique já não tem forças para subir os degraus. Ali mesmo, onde está, cai ao chão, quase desmaiado, desnutrido, desalentado. A força nervosa, a única que o vinha sustentando, abandona-o de chofre. Enfim cumprira o seu intento. Agora pode descansar, abandonar-se ali, até mesmo morrer...
         As figuras dos madeireiros ansiosos, reunidos em torno dele, esfumam-se aos seus olhos. As mãos que o seguram, que o prendem para erguê-lo, para transportá-lo para a barraca, são como cipós que o enlaçam. A barraca dança diante dos seus olhos. Zumbidos estranhos enchem-lhe os ouvidos. Parece que a floresta avançou sobre ele, investiu, terminou por vencê-lo. Cerra os olhos. E sente-se afundar num oceano verde, fantástico, onde tudo o que se move é verde. A terra ficou lá para cima. Ele se sente afundar. Quer falar e não pode, porque aquela água toda, lhe entrara pela boca. Sente que as forças o abandonam, de vez. E sente que quase morre, então... desfalece.
         Os caboclos depositaram o corpo esfacelado do professor, numa rede, à sombra da barraca e trataram os seus males. Primeiro os ferimentos, causados pelos espinhos e galhos da floresta, os inchaços e vermelhões, provocados pelas saca-saias, e por fim, a dor da fome. Henrique sentia que lhe empurravam goela abaixo, alguma coisa concreta, que lhe arranhava a garganta. Mesmo sentindo dores atrozes, não se negava a ingerir, aquilo que poderia salvar a sua vida.
         Em dois dias, estava de pé, pronto e restabelecido. Esquecido momentaneamente de seus próprios problemas, ele se atirou de corpo e alma a vida, junto daquele povo sofrido que o acolhera. Eram cortadores de madeira, viviam a maior parte de suas vidas, na floresta.
         Em pouco tempo, já estava perfeitamente integrado à vida amargurada e cheia de sacrifícios daquela gente humilde.
         __ Sim sinhô, seu professô! Metade do dia tá vencida. Vamo pra cozinha, que tá na hora de desafogá as mágoa, no armocim...
         Depois, recostados aos esteios da entrada, tapada por uma esteira de palha de ubi, dois dedos de conversa.
         __ Parece que você me disse, outro dia, que a gente principia a vida por aqui, devendo para os patrões... É muito? perguntou  Venâncio, um dos recém chegados à lida.
         __ Uai, cumo não, antão sô Iolando num falô pra ocê, quanto qui era? No dia que ele meteu a gente nas locação, divia de falá. Num dianta perguntá, ele inté que podia ficá brabo. Êis diz, que num gosta de trabaiadô, perguntadô!... Êis véve a jogá terra, nos óio da gente...
         __ Vóis micê, acha qui é face de pagá?
         __ Que inlusão! As coisa deve de orçá lá pelos dois mir rear, inté mais...
         __ Mas então, quanto tempo não vou levar pra pagar, para ter algum dinheiro na mão?...
         Henrique ouvia a conversa entre os caboclos e aos poucos recordava-se do motivo que o levara até ali. De repente, tudo lhe veio a tona, como uma bolha de ar, que se desprende do lodo, no fundo do rio...
         __ Florindo, Venâncio, eu agora to lembrando!... Lembro de tudo, como eu vim parar aqui... Eu sou do IBAMA, estava fazendo umas pesquisas...
         Os caboclos ao ouvirem o homem falar no IBAMA, logo se afastaram, ele era representante do órgão, que mais perseguia os madeireiros. Viviam a esconder-se desses fardado. A princípio eles ouviram atentamente a explicação do sucedido. Ao final, admiraram-se da coragem do professor, mas desculparam-se, por não possuírem meios de levá-lo para fora dali, teriam de fazer o trabalho deles, só mesmo com a cheia, é que eles poderiam ir-se para os barracões, próximos à Reserva Bom Futuro. Diziam que a Reserva, ficava há mais de cinco dias de viagem dali. Henrique sentiu-se mais uma vez perdido, sua única chance, seria unir-se ao pequeno grupo, dividir o pouco que tinham, agindo de maneira cooperativa, para o bem estar de todos.


VII


         Fazia frio lá dentro da barraca, Jericó, mais decidido, entrou, acendeu a lanterna de querosene, e começou a reunir gravetos para acender uma fogueira.
         Henrique sentou-se à um canto e observou Venâncio e Florindo, ajudando o amigo, com a fogueira. Logo, as toscas e negras panelas de ferro, ferviam, por cima da grelha de ferro. O feijão e a farinha, era o principal alimento dos cortadores...
         Meia hora depois, estavam alimentados, de jabá, farinha e café.
         __ Esquecemo de pedi sabão. disse Florindo, apalermado.
         __ É mesmo... Agora, quando é que a gente vamo pro barracão? Perguntou Venâncio.
         __ Ih! Premero a gente tem que limpá esses chão aqui, pro mode recuá os mato, e dispois, pricipiá a roçá os vão do igapó, pra quando as cheia chegá, pode levá as tora que derrubemo... Isso é serviço pra mais de dois mêis... Só ao dispois é que a gente pode metê as cara pro barracão... Imo di a cavalo nos toro, coisa de treis a quatro dia. Si nóis aparece por lá antes, sô Iolando é inté capais de corrê cum nóis daqui... É perciso muito cuidado com o seu Iolando, ele não é de brincadêra! Quando tá arreliado, num amostra... É que nem jacaré: se fica caladim, sem dizê nada, oiando pra gente, oio nele! O cabra qué avançá!...
         Ficaram ainda conversando um bom tempo, recostados à parede da barraca. Pelo menos a barraca era firme, bem construída. Ao centro, tinha um grande tronco de árvore, em volta do qual fora construída.
         Naquela vida, todos trabalhavam de igual pra igual, Henrique não pode se deixar ficar ali, sem fazer nada. Tinha que pagar a bóia que comia... Munido de uma foice, unia-se ao grupo e se embarafustava pela mata, derrubando, amontoando e abrindo estrada. Longas derrubadas eram feitas, alargando o igapó. Em breve, toda aquela área, seria tomada pela água das cheias, então, as enormes toras derrubadas pelo grupo, boiariam, e eles as conduziriam, para o leito do Purus. Era uma tarefa árdua, muito penosa! Quando a noite descia, todos estavam extenuados demais, para perderem o tempo conversando, assim que entravam para dentro da barraca, caíam, praticamente desmaiados.
         Certa manhã, Venâncio levantou resolvido:
         __ Olhe aqui pessoal... que coisa esquisita!... muito esquisita mesmo!... Será que não entrou ninguém no barraco, ao tempo que nóis tava cortando hoje?... Imagine vocês que eu tinha um dinheirinho, coisa pouca, uns cento e vinte real, no borso da calça de jeans, dentro do bocó... Dinheirinho que eu pretendia juntar com o  saldo, pra mode mandar vir a Terezinha... E imagina vocês que agora que eu procurei por toda parte e nada de encontrá!
         __ Ora, que coisa isquisita!... retrucou Jericó, com um olhar matreiro.
         __ Munto isquisita mesmo... disse Florindo.
         __ Você tem certeza de que estava guardado lá? Acudiu Henrique.
         __ Claro, visto que num tinha outro lugar pra guardar. Ainda ontem, seu Florindo, eu meti a mão por cima desse dinheirinho, tava lá, guardadinho. Quem será que entrô aqui e me levou o dinheiro?...
         Todos na barraca ficaram preocupados, Henrique, ainda mais, temia que pensassem que havia sido ele...
         À noite, deram em vão uma busca cuidadosa. O dinheiro desaparecera misteriosamente. Tudo foi revirado, revistado. Venâncio estava triste, morno, abatido. O dia correra-lhe mal, o eito que recebera pra derrubar, era cheio de cipoeiros, uma desgraça, naquele lugar... E agora, o dinheiro...
         O dia seguinte era domingo, o pequeno grupo partiu para a caça, levando cada um, sua arma, um facão ou uma foice, somente Florindo, possuía um rifle de caça. Ele era o mais experiente de todos, tava na lida há mais de vinte anos...
         Seguem então pelo mato, Florindo à frente, o resto do grupo, logo atrás. Florindo bota a mão, com fé, no chocalho de jararaca, que traz no bolso para protegê-lo na caça. Já observou que ali adiante há um barreiro de antas. Conhece o sinal dos esconderijos das pacas e sabe onde pousam os jacus. Henrique observa e aprende, atentamente, ele sabe que aquele conhecimento poderia ter facilitado muito a sua vida na mata. Então, anota mentalmente, cada gesto, cada ação, que o Florindo executa logo à frente do grupo. Passo a passo, em silêncio avançam. Os tiros fazem estremecer os animais assustados. Há um corre corre sobre as folhas que o sol secou. Os pássaros interrompem o canto, na sombria expectativa. Sentem que surgiu o inimigo. Por toda parte a luta.
         Logo têm as bolsas cheias. Terão fresco para o almoço e a janta, ainda por dois dias. Isso representa uma economia apreciável. Cada vez que o Florindo aperta o gatilho, pensa: “Mais dinheiro que vai sobrá”...  “Vou columizá mais um tiquim...”
         O grupo compacto, segue pelas picadas tortuosas e escuras da floresta, abatendo aqui e ali, uma presa, que distraída, não suspeita da aproximação sorrateira do caboclo.
         As horas e os dias passam muito depressa na floresta, o tempo corre num frenesi louco, semelhante ao esperma, que corre para alcançar o óvulo, na ânsia de não perder o fio de vida que ainda lhe sustenta. É uma corrida desesperada, onde só vencem os melhores, os mais fortes, os rudes.
         Logo às chuvas chegaram, as grossas nuvens se acumulavam durante o dia, feito um exército disposto a apagar o brilho intenso do sol, elas avançam estrategicamente, cercando tudo a sua volta, e quando menos se espera, chocam-se, produzindo um estrondoroso barulho, era como se os céus estivessem por desabar, sobre as cabeças ínfimas, dos homens ali esparsos. Em menos de três dias, o grupo se preparava para deixar a mata, em direção ao rio. Juntaram-se as tralhas e amontoaram-nas sobre a estreita jangada, feita de toros, amarrados por arames e cipós. Construíram ainda, toscas barracas de lona, onde se abrigariam das chuvas, durante a descida rumo ao Purus. Quatro dias depois, estavam chegando ao barracão.
         Henrique despediu-se agradecido, prometeu enviar-lhes alguma ajuda, assim que chegasse à Reserva, procuraria de alguma maneira, ajudar aqueles pobres trabalhadores, explorados pelo grande madeireiro. Verdadeiros escravos, internados nos quilombos da floresta.
         A chegada de Henrique à Reserva, se deu com muita festa. Todos ali julgavam-no morto, trucidado também pelos silvícolas traiçoeiros. O Coronel Amâncio, já tinha até mandado buscar a sua esposa, para que no momento oportuno, reconhecesse o corpo do falecido marido. Esthela estava para chegar naquele dia, vinha no próximo gaiola.
         Recolhido à um dos quartos da Reserva, Henrique foi medicado, e, depois de um breve descanso, Amâncio veio saber dele, onde afinal estivera, por todos aqueles meses.
         __ Minha Nossa Senhora! Como foi que o senhor conseguiu sobreviver à selva?
         __ Sofri muito, mas por fim estou aqui, quero esquecer-me de tudo por que passei. Quero ver minha esposa, quero ver Esthela...
         __ Tá certo, tudo bem, ela já está para chegar, eu já havia me adiantado, mandei-a seguir para cá, para que assim que achasse-mos o seu corpo, ela pudesse fazer o reconhecimento.
Pensávamos que tinha sido vitimado dos ataques Anuamãs, quase nenhum dos meus homens, dos que foram para a área do Riachão, com exceção de você e do Carvalho, escaparam.
         __ O Carvalho conseguiu?... Ele chegou aqui?
         __ Sim, ele está bem, quer vê-lo?
         __ Sim, mande-o entrar...
         Assim que o coronel deixou o quarto, Carvalho assomou a porta, estava luzidio, seus dentes brancos, se destacavam, dentro da boca escancarada, exibindo um sorriso contagiante, que arrancou algumas dores, do paciente enfermo.
         __ Então você conseguiu?... Quando chegou?...
         Eram muitas as perguntas, Carvalho se vendo ocupado por várias horas, sentou-se ao lado da cama do amigo, e contou-lhe a sua aventura, no dia chuvoso em que tinha deixado o acampamento do Riachão. A tarde se escoou, como a água de um café bem forte. Lá fora, a movimentação era intensa. Assim que o apito do gaiola foi ouvido, toda a Reserva se pôs ao trabalho. Enormes caixas e fardos, eram transportados para junto do trapiche. Haveria muito movimento aquele dia, todo corriam em direção ao porto, para receber a esposa do professor, além disso, havia muitas encomendas a serem descarregadas, a festa era como sempre, um turbilhão de sons, cores e movimentos.
         Henrique que se mantinha na cama, levantou-se apressado, apesar dos protestos de Carvalho, ele se dirigiu ao banheiro, queria dar um jeito na sua aparência. Sua barba estava crescida, seus cabelos desgrenhados. Não queria de maneira nenhuma receber a esposa daquele jeito.
         Esthela, ao saber que o marido estava vivo e forte, não esperou que lhe dessem licença para vê-lo. Assim que soube da boa nova, correu na direção do quarto que Carvalho havia lhe indicado. Seu coração disparara e batia descompassadamente
suas mãos geladas, pelo suor frio que começou a inundá-la, por todos os poros, tremiam. Quando entrou no quarto, deparou-se com a cama vazia. Por um momento imaginou que tudo aquilo poderia ser um engano, que talvez não tivesse ouvido direito.
         Então a porta do banheiro se abre, e Henrique lhe aparece inteiro, vivo, com saúde... Apesar da barba crescida e dos cabelos, ele lhe parece bem. Seus olhos se iluminam, a esperança que havia perdido durante a viagem, retornou-lhe mais intensa. As lágrimas minaram, tal qual uma fonte, no meio do deserto árido. O coração batendo descompassadamente, parecia-lhe querer sair do peito, saltar pela boca. Por um momento, sentiu-se presa ao chão, mas num ímpeto de desejo agoniante, ela lança-se ao seu encontro, deixando-se acolher, pelo abraço terno e carinhoso do marido.
         Durante os dias em que o casal permaneceu ali na Reserva, Esthela pode ter uma idéia, de como seria a vida em Itaúna. Ricardo Falcão, depois de ouvir toda a história do professor, teve certeza de que os Anuamãs, eram mesmo os índios que procuravam. Com as explicações e narrativas a respeito das trilhas e picadas, por onde ele tinha andado, logo os seus homens estariam ao encalço deles.
         Grato pela valiosa colaboração prestada ao IBAMA, Henrique recebeu a Reserva Biológica de Itaúna, para comandar e proteger. Sua vida estaria se modificando radicalmente a partir daquele dia.

         VIII

         O São João aproximava-se e eram preparativos por todos os lados. Na Reserva do Itaúna, tudo era movimento. Seria a primeira de muitas outras que o povo da Reserva organizava, sob o comando do novo superintendente. Os cortadores de madeira, que vinham aos domingos para os aviamentos, eram convidados a comparecer ao baile que ia haver no barracão. Preparavam-se fogos, música, mandavam convites aos caboclos esparsos pelas margens do Purus. Sussurrava-se, mesmo, que o superintendente da Reserva, havia feito ao comandante de um gaiola umas encomendas da Boca do Acre... Viriam também, os seringalistas do São Francisco. Ramiro, o braço direito do professor na Reserva, em certas noites de lua, embarcava com o Pablo numa montaria e ia rio acima, dizia ele, que para fazer convites. . Outros murmuravam que não. Que D. Ernestina já tinha sido esquecida... O passeante noturno convidara o Henrique a acompanhá-lo. Mulher? Não... Henrique não queria. Vivia cheio do pensamento de Esthela, era feliz e satisfeito com a sua companhia. Esthela já estava habituada com a vida ali no ermo. Sua maior alegria, eram as viagens que faziam aos outros povoados, para fazerem compras, ou gastarem um pouco do dinheiro que ele ganhava. Ali na Reserva, quase não gastavam...
         Entre as muitas funções que o professor desempenhava dentro da Reserva, a fiscalização da área, era a principal. Vivia correndo para cima e para baixo de barco, em busca de caçadores, pescadores e  lenhadores. Além disso, mantinha na reserva, um serviço de assistência médica, era primário, porém oferecia uma gama de remédios, ao povo ribeirinho. Além do pequeno ambulatório, cuidavam dos animais capturados pelos caçadores, que depois de resgatados, deviam passar por longo período de adaptação, para só então retornarem a liberdade da floresta.
         A amizade que unia Henrique aos seus ajudantes, Pablo e Ramiro, era invejada por muitos moradores ribeirinhos. Porém, o caráter e as ações do novo superintendente, despertaram, a simpatia geral do povo. Seu modo franco e a sua ausência de pose lhe conquistaram muitos amigos.
         Naquela noite, Ramiro  e Pablo traçaram um magnífico plano para o dia seguinte: iriam à viração das tartarugas. Estavam no tempo da arribação e havia muito que o Henrique desejava surpreender esses bichos na postura dos ovos. E ficou, então, tudo combinado para o dia seguinte.
         Numa praia próxima, em terreno pertencente à Itaúna, Ramiro proibira a presença do elemento humano e a atracação de embarcações. Sabia-se que as tartarugas, se aí encontrassem os traços da passagem de gente ou de outros bichos, recuariam. Precisam elas de silencio e solidão para as suas excêntricas bacanais noturnas. Desde a véspera, a praia da viração foi, pois vigiada. E, na noite aprazada, Henrique, Ramiro, Pablo acompanhados de  mais uns quinze caboclos residentes dentro da reserva, foram, pé ante pé, alçar-se às árvores adjacentes, escondendo-se da luz da lua, para esperar o momento em que os testudos emergeriam das águas para a desova. Havia um silêncio absoluto, apenas quebrado pela respiração dos homens suspensos e pelo marulhar do rio que corria, sereno. Lá para dentro da selva, um chiado constante, com o conjunto de milhares de rumores indistintos que se perdiam na amplidão da noite.
         Em pouco surgiu o cortejo das tatarugas, deixando nas areias os trilhos das marcas paralelas das patas recurvadas. Era um espetáculo assombroso, novo, inteiramente inédito para o professor da cidade. De todo os pontos, surgiam os horrendos animais, dos barrancos e da água, de sob as plantas e de buracos imprevistos. Abriam aos milhares, cavidades que durante algum tempo cobriam com os corpos pesados. Saiam depois, aí deixando os ovos depositados, não, porém, sem ter o cuidado de cobrir tudo com areia, para a salvaguarda dos possíveis ataques de outros animais. Ficaram por ali, numa confusão pavorosa,  empretecendo as areias da praia, que mostravam apenas alguns trechos, a brancura do fundo. E eis que, de repente, o Ramiro deu o brado de avançar. Saltando das árvores os dezoito homens  correram sobre as tartarugas, que fugiam apavoradas. Henrique, vendo como os outros faziam, em pouco agia como era de se desejar. Segurava os bichos pelo casco, assentava o pé na parte traseira e impulsionava-os, virando-os de costas. Os animais agitavam ainda por algum tempo as patas no ar, encolhiam as cabeças, escondiam-se no casco. Muitas escapavam para o rio. Era preciso fazer tudo com energia, prontidão, habilidade. O Pablo, o José e o Juvêncio, agiam com uma agilidade espantosa. A noite ia alta, quase no seu fim, quando os rapazes deram o trabalho por terminado. E, quando a luz indecisa da manhã veio banhar a praia  toda pontuada de pesadas manchas escuras em alto relevo, puseram-se eles a demarcar os bichos. Isso serviria para manter o controle populacional da espécie, naquela área. E agora, depois de tudo feito, toca a desfazer na areia os vestígios, pois se assim não fizessem, nenhuma outra tartaruga ali voltaria.
         O dia já estava claro, e a passarada cantando na floresta, quando Henrique e seus companheiros voltarão para a Reserva. As canoas deslizavam pelo rio como por sobre um espelho macio. Gaivotas revoavam daqui e dali.
         __ Valeu ou não valeu passar a noite sem dormir? perguntou o Pablo, a fisionomia cansada, batendo na perna do amigo.
         __ Claro que sim. Foi um espetáculo interessantíssimo.
         Na mata próxima ouvia-se o canto das saracuras anunciando o tempo seco: Três potes! Três potes! Três potes!... De repente, uma gritaria espantosa tomou conta dos ares, fazendo voltar os rostos dos homens agrupados nas canoas. Os remadores, surpresos, retardaram as remadas. Os periantãs que desciam na corrente foram de encontro aos remos indecisos.
         __ São os periquitos. explicou Ramiro.
         E uma nuvem verde se destacou na margem, onde se debruçavam plantas sequiosas. Milhares de periquitos esvoaçavam, gritando, chilreando, gorjeando, afiando as gargantas como punhais que enterrassem no silêncio,  uma lâmina aguda e mortal.
         __ É o despertar dos periquitos...
         O sol elevava-se no horizonte. A terra parece aquecer-se, com o chiado das mil vozes dos animais da floresta. Quanto mais o dia caminha, porém, mais vão desaparecendo os ruídos da fauna, que se elevarão novamente às caladas da noite.
         Henrique tem a cabeça pesada, pela vigília e pelo parati que bebeu a noite inteira. Se Esthela soubesse... Mas não adianta querer escapar ao meio. Ali todos bebem. Se ele recusar bebida, hão de comentar, hão de rir-se dele... E, afinal de contas, que mal faz um pouco de cachaça?
         Com mais duas horas, chegam enfim à reserva. Esthela os aguarda ansiosa à janela da casa. Henrique despede-se de seus amigos e segue célere para junto da esposa. Ele sentia necessidade de estar sempre junto dela. Ela lhe trazia uma força desconhecida. Ao seu lado, ele se sentia capaz de enfrentar tudo e todos. Assim que subiu as escadas que davam acesso ao alpendre da casa, Esthela veio ao seu encontro. Quem os visse, garantiria que fazia muitos dias que não se encontravam. Tal foi o entusiasmo com que os corpos se encontraram...
         __ Patrão agora vai tirá uma sonequinha... qué apostá?... falou Ramiro com certo sarcasmo na voz.
         __ Não tenha dúvidas... completou Pablo.
         Terminado o banho, Henrique seguiu para o quarto, deitando-se completamente nu, sob os lençóis macios da grande cama de casal. Minutos depois, Esthela adentrava ao quarto, trazendo-lhe uma bandeja com café fresquinho.
         __ Trouxe-lhe um café fresquinho, acho que está precisando?!...
         __ Negativo... o remédio para os meus males, é você...
         Mal terminou a frase, puxou-a para junto de si. Esthela já estava acostumada com as maneiras despojadas do marido. Deixou-se entregar aos seus carinhos, ao seu amor, a sua dedicação...
         Aos poucos ele lhe soltou os longos cabelos, que livres, dos grampos que os prendiam, num imenso coque, no alto da cabeça, escorreram-lhe pelos ombros. Puxando, delicadamente a alça da fina blusa que Esthela usava, ele pode observar os lindos e pequenos seios, que sustentados por um delicado e mimoso sutiã de seda, ansiavam pela liberdade. Entre longos e doces beijos, ele desatou os ganchos do sutiã, liberando os seios entumecidos, para o frescor da tarde que rolava. Ao fundo, o som de uma canção de Leandro e Leonardo, embalava a imaginação e o amor dos dois apaixonados. Esthela sentia-se excitada. Seu marido era um verdadeiro expert, quando se tratava de seduzir e exitar uma bela mulher. Quando finalmente ele percebeu que os pequenos  seios de Esthela estavam livres e ansiosos, trêmulos sob o seu peito, fechou os olhos, antevendo-os nitidamente e afastando-se delicadamente dos lábios da esposa, pousou os seus, sob o cálido mamilo esquerdo. Ao toque quente da boca de Henrique, Esthela sentiu o corpo todo estremecer, correntes elétricas lhe subiam dos pés, afogueando-lhe o ventre. O hálito quente de Henrique, provocava a formação de centenas de pequenos bicos aureolados, na pele de Esthela. Não havia um pedaço sequer de seu corpo, que não estivesse eriçado, diante dos carinhos do esposo. Lenta e apaixonadamente, ele desliza suas mãos por sobre a cintura da amante, arrancando-lhe suspiros de prazer. Seus dedos delicados, destros na matéria, deslizam pelo seu corpo, feito uma onda, levando em seu caminho, a fina saia de seda, junto à calcinha de rendas. Esthela estava letargicamente estática, sentia com tal intensidade os carinhos do marido, que estava completamente alheia a tudo que se passava do lado de fora da casa. Tendo o corpo da mulher, inteiramente despido à sua frente, Henrique não se conteve. O frescor e o aroma que a sua pele exalava, exitava-o cada vez mais, sua boca deslizava num frenesi maluco, por todo o corpo da esposa. Sua língua, naquele momento, pareciam as antenas dos caracóis da floresta, que as utilizam para sentir o ambiente, para tatear o desconhecido. Com ela, Henrique percorreu os mais impenetráveis segredos de seu corpo. E, então, não suportando mais aquela tortura, ele a possuiu, amando-a como nunca. Parecia-lhe estranho que a cada momento em que se entregavam ao ato sublime do amor, era diferente. Esthela, parecia ser a primeira mulher que ele conhecia. Sempre!
         A tarde inteira se esvaiu naquele ritmo.
         Jericó, Florindo e Venâncio aguardavam com ansiedade o dia de São João. O Ramiro viera com a novidade e, antes, Jericó tinha trazido do Barracão, a notícia que ia haver baile no barracão da Itaúna. Nas longas horas de isolamento, os três companheiros falavam sobre os acontecimentos e, sobretudo, o que estava por acontecer. Pensavam, mediam, excogitavam todos os fatos e todas as hipóteses, com essa minúcia habitual dos que não tem assunto novo, nem emoções variadas.
         Jericó começava a sentir-se desanimado com a derrubada da madeira. Seus eitos não rendiam boas toras, na maioria das vezes, a estrada que tinha de abrir, encontrava-se no meio dos espinheiros. Iolando tinha feito canalhice com ele, prometendo-lhe tanto e mandando-o para junto daqueles dois molengas, para aquela área escassa.
         Os sons da rabeca, do clarinete, da harmônica, dos violões e cavaquinhos, saltitavam pelo ar, sincopando de ritmos frágeis e entrecortados o mistério compacto da noite. Luzes, homens sons e até bichos enxameavam na grande casa. Na escada fronteira, que dava acesso ao alpendre, uma multidão se comprimia, subindo e descendo sem interrupção. Na sala espaçosa, onde os pares se estreitavam, sob fios de lâmpadas provisoriamente armados sobre suas cabeças, um ranço nauseabundo de suor e cachaça. Quando a música cessava, e os componentes da orquestra enxugavam com lenços grosseiros as gotas que lhes desciam pelo rosto, o Pablo vinha com uma vela e espalhava serragem por sobre o assoalho. As damas, abanavam-se. Os carapanãs, folgavam, entrando de rijo pelas ventas e ouvidos dos dançarinos. Grandes jarrões de quentão, iam e vinham, trazidos pelos empregados da Reserva. Havia como que uma cerração espessa de vozes, de respirações de hálitos. As luzes iluminavam fartamente o centro do salão, deixando na semi-obscuridade os recantos próximos às janelas, e lá fora o alpendre estava envolto em uma penumbra brumosa, batida, apenas, de viés, pelo luar que lhe dava em cheio, no telhado. Os rojões, estouravam no ar, seguidos de risadas e exclamações espalhafatosas. E pelo rio era um deslizar de canoas, que abriam compridas tiras tremulas na superfície tranqüila das águas.
         Todos na reserva se desdobravam em atenções, com os caboclos que vinham prestigiar o São João da Itaúna, com o dinheiro arrecadado nessa ocasião, Henrique comprava os remédios que distribuía entre os ribeirinhos e os caboclos da região.
         Da madeireira Santo Antônio, viera grande número de operários. E era até uma sensação a presença de seu proprietário, todo empertigado em seu terno de brim, o Iolando de Freitas, que dava à Itaúna a honra de abrir o baile, dançando a polca com a caboclinha que trouxera consigo na voadeira. Dizia-se de boca pequena que a rapariga em questão, fora negociada por ele, com um agenciador que a conduzia ao Acre, juntamente com uma turma de outras jovens.
         Tendo parado no Santo Antônio por uns dias, ai permanecia já bem três semanas. Todos os olhos ávidos dos lenhadores, pousavam sobre ela. Não era muito bonita. Notava-se em sua pele o lusco-fusco de forte mestiçagem. Tinha a boca fina, olhos miúdos, estatura reduzida  . Trazia uma saia vistosa de ramagens berrantes, os braços roliços, livres sob as mangas abertas do corpinho justo, e um ramo de alecrim  nos cabelos escuros, que lhe caíam em ondas pelas costas carnudas. Enquanto dançava com o Iolando Freitas, lançava olhares aos caboclos espalhados pelo salão. Dançava e requebrava bem. Ramiro pedira a honra de valsar com ela. Pablo, esticando melhor laço borboleta da gravata, conseguira a promessa de um maxixe. Iolando Freitas pegava os copos com os dedos grossos, carregados de anéis valiosos e sorvia-os demoradamente. parecia um homem sem fundo. Não havia bebida que lhe bastasse.
         As outras mulheres, também tinham uma grande procura. Fosse lá como fosse, era agradável, sentir o contato de carnes femininas ao som das músicas brejeiras ou chorosas.
         Henrique não tinha dançado ainda. Foi o que lhe observou o Ramiro, aproximando-se dele, já meio tonto. Era necessário, que diabo! mostrar certa complacência, um espírito de solidariedade para com seus fregueses. Que dançasse, ao menos uma vez! Que diriam dele? Que era um orgulhoso, que não se misturava...
         __ Está certo, vou apanhar a minha esposa...
         Henrique dançou apenas uma música, não estava acostumado e não gostava mesmo daquelas prevaricações. Esthela também preferia assistir, mantendo-se sempre na cozinha, espiando de vez em quando, a algazarra no salão. Não quis permanecer ao lado do esposo, ela sabia que não era correto dar carão, nos bailes da região. Poderia até terminar em morte, uma história daquelas...
         Fumando, Henrique se retirou com a esposa para a varanda. Era bonito o efeito das luzes  estirando-se ao cumprido do chão da terra roçada, indo mesmo até a fímbria escura da floresta que avultava, tremendamente espessa, no horizonte próximo.
         Súbito um bater de palmas. E no terreiro faz a irrupção o número de grande sucesso da festa: o Boi Bumbá. Quatro pernas, a cabeça com chifres de boi verdadeiro, penduricalhos de toda espécie sobre o focinho, pesada coberta de chita caindo-lhe em dobras sobre o corpo todo. A gritaria esfuzia na noite sacudida de emoções. Henrique e Esthela estão boquiabertos diante de tão maravilhoso espetáculo. É o primeiro que assistem de tão perto. Lá dentro a música estaca, os convidados correm ao alpendre. Todos espiam, todos se apertam para ver melhor, erguendo as cabeças os que estão em baixo, espichando os pescoços os que se comprimem no alpendre ou nas janelas.. Dança o Boi Bumbá, entre a Mãe catarina e o Pai Francisco, tanto quanto ele, carregados de enfeites e lantejoulas. A matraca da exótica personagem feminina, encarnada por um lenheiro fantasiado de mulher, faz requebrar a carcaça de madeira do Boi Bumbá. Tudo isso pula, dança, ri e se diverte.
         Depois, exausto, o Boi senta, Seu corpo parece dividido em dois pedaços. Sua cabeça é mesmo subitamente jogada para trás e lá surgem as dos pobres caboclos que, sedentos, viram os copos de cachaça e quentão, que vários companheiros, solícitos, lhe apresentam.
         A apresentação chega ao fim, mas a festa continua. Lá dentro, já a orquestra se põem a tocar uma rancheira, logo os pares já estão a requebrar no meio do salão. Esthela é chamada à cozinha, para o preparo de mais um tonel de quentão. Henrique permanece ainda, olhando com descontração, as brincadeiras e arruaças que os caboclos aprontam com o lenheiro, vestido de mulher.
         Henrique assiste a tudo, cheio de curiosidade, as comidas são distribuídas e ele se afasta.
         __ Que é que vocês estão discutindo aí?
         É o Pablo, que segura um homem pela gola do casaco, empurrando-o mesmo, agressivo. O homem parece já não ter pernas. Henrique se aproxima.
         __ É você Venâncio? Que é que você tá fazendo aí, neste estado? E você, Pablo, também está bêbado?...
         __ Eu não, professor. Esse caboclo é que num vai bem das perna... Emborcou demais no quentão...
         Os olhos já engazeados de Venancio caem sobre o professor, com toda mansidão que lhes é habitual.
         __ Seu professô... Me descurpe...
         Henrique toma-o pelo braço.
         __ Deixe-o ir, Pablo! Está em mísero estado...
         __ Num tenho curpa... Imagine que o home desde que chegou, tá falando no tal Jericó, que trabalha junto com ele na  mata. Diz que o outro roubou ele. Jura por todos os santos... Será verdade?...
         Henrique levanta os ombros.
         __ Venha Venâncio... Venha comigo. Vamos andar um pouco para fazer passar essa bebedeira.
         O homenzarrão deixa-se levar. Ainda o respeito sobrevive, na profunda derrocada que o álcool produziu. Caminham a esmo, nos bordos da floresta, onde os últimos raios das luzes do barracão vão agonizar, desfazendo-se no chão fofo. Caminham...
         Súbito, a prata líquida de um igarapé silencioso, surgindo como um tesouro inesperado. Sentar-se-ão ali, para que a embriaguez do amigo se desvaneça e que o raciocínio volte. Conversarão um bocado. Sempre simpatizara com esse homem. Gostaria, talvez, de lhe sondar a alma dolorosa e rude. E Venâncio se põem a falar.
         Conta de suas penas, de seus sacrifícios desde que chegara no corte, como se seu interlocutor não conhecesse a vida que levava, na área do corte. A língua, por vezes, se lhe desanda, tem dificuldade de encontrar as palavras, atrapalha-se.
         Henrique escutava-o calado.
         __ Venâncio, experimente dormir um pouco, eu o desperto daqui um pouco.
         __ Dormi? Ah! sim!... durmi na noite de São João?! não, o santo zanga... Eu vô é bebe pra saúde dele.
         E tirando do bolso uma garrafa aí mal dissimulada, virou-a na boca.
         Henrique o olhava penalizado... Até em que grau de degradação, pode um homem chegar?...
         No barracão, o vai e vem  desenfreado dos corpos na animação das danças ininterruptas. Em falta de mulheres, homens com homens, tudo dançava.
         Quando o Ramiro anunciou que estava terminado o baile, o Iolando Freitas jazia numa cama estirado, após ter vomitado grande quantidade de cachaça. Vários caboclos dormiam pelos cantos, vencidos. Alguns já iniciavam a volta para os centros de onde vieram, os mais próximos. Outros pernoitariam nas barracas adjacentes.
         No meio daquilo tudo, Jericó conseguiu, de relance passar a mão na caboclinha do Iolando Freitas, segurando-a pelo pulso.
         __ Pra onde é que ocê vai, fugindo ansim? perguntou.
         __ Ora me largue seu moço... Tá tudo mundo caindo de bebedeira... Sô Iolando tá que é uma vergonha... Antão eu vô mimbora...
         A passos rápidos, esgueirando-se nas sombras, dirigia-se ao trapiche.
         __ Eu levo ocê... decidiu Jericó. __ Me diga onde é, que eu remo.
         Num instante a canoa cortava tranqüilidade do rio. O luar, de cima, espalhava suavidade pela terra. A moça deitou a cabeça no bordo da embarcação.
         __ Tô cansada, cansada!... avisou.
         Jericó não respondeu. Estava resolvido. Não a largaria.
         __ Cumo é qui ocê conseguiu escapuli? hem?...
         __ Sei lá... dei um jeito... De repente, panhei o sinhô Ramiro distraído cuns home e corri... Ele não queria largá mão de mim... Mas tô munto cansada!... E dispois, sô Iolando tá bebo, é uma disgraça... Só tava vontadosa de me vê livre dessa gente toda... Vô discansá!
         __ É longe o Santo Antônio?
         __ Um bom estirão. A gente viemo num instante, mais porém, é que estava na vinda, é diferente... Vinha tudo cantano, que era uma beleza...
         __ Ocê sabe cantá?
         __ Sei não...
         __ Que é que ocê sabe fazê?
         __ Nada...
         Queria ver-se livre do conversador. As remadas faziam um clope clope acalentador. Seria bom deixar a cabeça pender e adormecer...
         __ Agora, ocê entre pur esse paraná, que vai dá no Santo Antônio.
         __ Oh! disse o rapaz. __ O paraná tá é quaje seco... Cumo é que vai sê?... Tá longe ainda?
         __ Não, tiquim de nada...
         E Jericó pulou, atou a proa da canoa um cabo e, caminhando pela praia, foi rebocando a embarcação. A rapariga caminhava, exausta, a seu lado. De vez em quando vinha-lhe um soluço seco e da boca se lhe desprendia um forte cheiro de bebida. O ramo de alecrim caíra na areia da praia.
         Chegados à barraca, Jericó deixou a canoa encalhada na areia. A moradia da cabocla, era como todas as outras moradias em derredor, humilde, precária. Apenas internamente, um mobiliário mais cuidado, uma mesa, uma cama, um armário, duas cadeiras e uma penteadeira velha e manca, sobre a qual não faltavam alguns objetos de adorno femininos.
         Sentado ao canto, os braços apoiados à mesa, que um paninho de crochê vermelho cobre, Venâncio está de fronte a uma garrafa de cachaça.
         __ Ocê recebe bem a gente, hem!... Tem copo também aí, pra gente bebe, os dois, hem?... Mas porém, me diga antes, cumo é seu nome. Que pelinha macia, Virge Mãe! Deixa eu vê esse veludo na parma de minha mão...
         A mulher estendeu o braço, com um sorriso de condescendência. Que pena! pensava. Se fosse o outro moço, aquele outro fiscal do IBAMA, o tal Pablo, em vez desse troncudo!
         Mas ele está reclamando os copos, ela vai buscá-los, ao armáriozinho ao canto do quarto.
         __ Como é seu nome, beleza? insiste Jericó.
         __ Florentina... murmura ela, sentando-se e pensando noutra coisa.
         __ Frorentina! nome bunito!... Eu tive uma irmã que si chamava de nome ansim... Uma era frorentina, a otra Das Dor, Maria das Dor...
         A rapariga que ia levar o copo à boca, estaca por um momento.
         __ Ocê, de onde é? pergunta hesitante.
         __ Sô de munto longe... Lá dos Fundão... Lá no Ceará...
         Florentina levanta-se. Seus olhos faíscam. Empalideceu. Ele a segura pala saia.
         __ Que é que ocê tem querida? Num vê que eu tô maluco pur ocê?...
         Ela se chega bem perto dele e, segurando-o pelos ombros, olhando-o fundo nos olhos, como a querer sacar dali uma terrível verdade:
         __ Ocê é o Firmino, ou o Corózinho, hem?...
         Jericó está perturbado. Deixou de lado o copo.
         __ Num diga! exclama apenas.
         Florentina  senta-se, desanimada.
         Meu irmão... murmura, os braços pendidos. E depois de uma pausa: __ Qual deles ocê é?
         __ O Corózinho...
         __ O Corózinho!... repete a esmo __ Quem havera de dizê!?
         E vira um trago. seu rosto está transfigurado, sua voz amarga. Jericó balbucia, profundamente contrariado:
         __ Pra que ocê foi discubri?!... Logo agora!...
         Florentina levanta-se, Afasta com a mão as idéias que lhe assaltavam o cérebro. Depois se chega ao irmão e pergunta, quase sem voz:
         __ Ocê sôbe do Juinho?
         __ Sube, morreu embaxo da casa qui caiu!...
         Após um pequeno silêncio, Jericó pergunta:
         __ E o Froriano? E a Filisbina?...
         __ Sei lá... é a resposta.
         Há um longo silêncio. Florentina vai até a porta. Abre-a. A barraca dá para o igarapé seco. Sim, está tudo seco, tudo, tudo... como aquele leito de rio vazio, o fundo à mostra...
         Leva a mão ao rosto. Esquece o tempo. Volta ao passado. Quando ergue novamente a cabeça, vê o corpo do irmão Corózinho caído sobre a mesa. A garrafa está vazia, que bruto! o copo virado. É tarde. Está tudo tão silencioso e escuro lá fora! Florentina sacode o irmão:
         __ Vamo Corózim, ande! Venha drumi na minha cama, que eu cedo ela prô cê!
         Embrutecido, Jericó levanta-se pesadamente e, amparado por ela, vai até o leito, onde se atira. Florentina solta os cabelos, tira os grampos de tartaruga, cuidadosamente. Não se despe. Põe no chão, a um canto, algumas roupas usadas e ali se deita.
         Apesar do cansaço, o sono custa a vir. A vida é tão esquisita! Não pode deixar de ficar lembrando o passado, esse pobre passado de folha solta, que é o seu. As recordações, conduzem-na aos planos futuros. Ah! Poder, enfim, um dia comprar um bonito vestido de seda, perfumes cheirosos, sapatos finos, poder se emperequetar toda, e voltar difinitivamente para o Ceará!... Era o seu sonho esse! Quando se pudesse libertar daquela vida errante, rios afora, hoje aqui, amanhã acolá, haveria de ir para a sua terra, onde teria uma casa, e roupas, luxo! E uma criada para servir! Com mais algum tempo de trabalho, haveria de conseguir isso! Já tinha mil e setecentos reais, ali na gaveta da penteadeira. Com  mais um ano ou dois... Ah! Nem queria pensar!
         E afinal o sono veio.
         De manhã cedinho despertou com o ruído do irmão que se levantava. Ficou bem quietinha para evitar falar-lhe. Tinha vergonha dele. Melhor seria que se fosse embora, sem mais nada dizerem... E, aguardou imóvel, a sua saída.
         Jericó, meio hesitante, andou pelo quarto, deteve-se diante do espelho, na cômoda.
         __ Cum certeza tá se penteano. pensou ela.
         Depois, mais apressadamente, ele se encaminhou para a porta. Abriu-a e saiu, procurando não fazer barulho.
         __ Coitado!... murmurou ela. __ Tombém tá cum vregonha...
         E ergueu-se. Andou, primeiro, meio às tontas pelo quarto. Retirou da mesa os copos e a garrafa. Foi ao leito, sacudiu a colcha e o refez. Depois foi ao espelho e procurou o pente. Devia estar na gaveta. E, ao abri-la, parou, de repente, estupefata, boquiaberta.
         A caixinha onde guardava o dinheiro, os seus R$1.700,00! Estava aberta e vazia diante dela.
         __ AH! Cachorro! Cachorro! murmurou, depois de algum tempo, os punhos cerrados.
         E, sentando-se na cama, desatou a chorar.


IX


         A manhã ia alta e a canoa deslizava pelas águas sombrias do Rio Purus. Henrique era todo atenção, e atenção deslumbrada, para a paisagem em volta. O rio corria inchando as águas movediças, traiçoeiro, violentando obstáculos. Nessa zona havia largas baías escuras, de águas revoltas e perigosas. As ondas corriam firmes, intumescidas. As ilhas que iam aparecendo eram uma constante distração para os olhos ávidos do professor. As alvas praias, eram como os sorrisos da terra. Aliás, tudo sorria na natureza. Apenas alguns rochedos salientes pareciam mudas admoestações, solenes ameaças contra o otimismo da embarcação veloz, que cortava a distância. A grandiosidade do cenário e das águas em volta, distraíam o professor, monopolizando o seu pensamento, a civilização ficara para trás, distanciada pela massa líquida, guardada como um objeto. Na frente de Henrique, estava a sua carreira profissional. Ele era todo atenção para essa perspectiva, o que ele encontraria por lá? Uma simples lenda? Uma crendice popular? Quase que ele desejava complicações para provar a sua competência.
         De quando em quando comia um biscoito para distrair o estômago. Oferecia também um pouco de cachaça ao caboclo. Este largava os remos um momento, dava um gole, um suspiro, revirava os olhos e pegava de novo no trabalho. Henrique ria do seu jeito. Na verdade havia muito tempo que não botava nada de álcool  na boca, fizera a pedido de sua esposa, tinha deixado de beber por completo. Mas ninguém como ele, apreciava um bom traguinho. A cachaça que tinha era muito ordinária, coisa mesmo do Ramiro que tinha arranjado na véspera do embarque, num botequim vagabundo. Em todo caso servia. Quando dava uns goles, parecia sentir-se melhor, ver as coisas de uma outra maneira . Era preciso porém tomar cuidado. Sabia que tinha a cabeça fraca. Por isso é que a esposa lhe recomendara sempre, com insistência, que não bebesse. Mas mulheres estão sempre a recomendar uma porção de coisas!
         Sem ela, ficava meio atônito, mas com uma esquisita sensação de liberdade.
         Em torno olhava a natureza silenciosa, indomável indiferente. Tudo era belo. A terra vasta.
         O homem não deve, não pode mesmo, limitar-se a viver num só lugar, pensava. Os homens são o sangue da terra: precisam circular!
         Sozinho, as diferenças entre ele e a mulher lhe apareciam. Na verdade, eram coisas de pouca monta. Ninguém o compreendia como a Esthela. Em todo caso, o homem só é mais forte! pensava. E a brisa que tocava mansamente os seus cabelos ia lhe varrendo certas idéias, alisando outras, soerguendo algumas. retemperava-se. Tomava mais um gole de bebida.
         Só pela tardinha, quando já se ia ouvindo o pio triste dos socós e dos maguaris, é que a montaria alcançou as terras do Cantão, após a passagem perigosa de um “rápido”. Agitando as canaranas da margem, o prático, conhecedor da região, atracou a embarcação e ajudou o professor a desembarcar. As águas estavam um tanto altas, por causa das chuvas que tinham sido freqüentes.
         Henrique seguiu mato adentro, por um estreito caminho. O prático ficou num taperi onde estavam também uns caminheiros abrigados.
         As primeiras estrelas começavam a piscar. O caminho era um tanto longo, carregado de sarmentosas lianas e cipós entrelaçados. Era uma confusão vegetal. Abundantes epífitas, parasitas invasoras, flores viçosas que os brutais cipós asfixiavam, tudo se erguia e lutava, clamando mudamente  pela conquista de um solo superdisputado. Os apuizeiros abriam os braços estranguladores, investindo em gestos tenazes de invasão sobre as plantas indefesas. Semelhando um vasto arrozal, o capim-membeca, no seu emaranhamento com as canaranas, espalhava-se por larga distância.
         Samuel ia por caminho desigual, maltraçado, atento aos menores ruídos, tomando fundas respirações, encantado com o ar virginal e o cheiro fresco que se evolava daquela região brutalmente pura. Era bem a sua terra aquela, violenta, exuberante, contraditória! Com amor pousava os pés no solo úmido, rico e fértil, procurando uma explicação para aquele congraçamento que sentia quando se punha em contato com a terra. parecia que seu corpo respondia ao chão, quando nele pisava:
         __ Pronto! Aqui estou... sou todo seu!
         Ah! Esthela nunca haveria de compreender aquela exaltação que ele sentia pelo solo, pela  terra fecunda, por essa vastidão do Amazonas, que estava cheia, sempre cheia, de tudo e de nada, repleta, regurgitante de vida e de mistérios, mistérios estes, que Henrique desejava desvendar! Ah! sua terra! Era claro que Esthela nunca compreenderia. Talvez nunca viesse a sair da Reserva do Itaúna. Freqüentaria a casa dos amigos, iria às compras, à praia. Mas não pisaria, como ele estava pisando, o solo adubado pelo sagrado humo, o coração da terra que pulsava por ele... Teve pena de Esthela.
         A casa de Azambuja Cerqueira apareceu na curva mais próxima. Henrique passou a mão pela testa. Era preciso entrar firme, com imponência. Soltou um bafo mais forte, retendo-o com a mão, para ver se cheirava álcool.
         Azambuja Cerqueira estava á porta da casa, enrolando um cigarrinho de palha. Pela gola aberta da camisa de tergal, via-se-lhe o saquinho de muiraquitã, preso por um barbante de sisal ao pescoço. Tirou o chapéu de palha , em sinal de respeito, e veio ao encontro do professor.
         __ Boas tarde Professô! Pensei que num tinha acertado de dá nesse firme onde a gente veve. Foi perciso subi um bocado , hem?!...
         Uma caboclinha tocou os bacuris que invadiam a casa e perguntou  “se o professô num tava vontadoso de tomá arguma refeição”. Mas como o Azambuja lhe dissesse que a anta tava lá no paiol, separada, e estava para qualquer hora, Henrique achou melhor vê-la antes.
         Uma lanterna de querosene iluminava o paiol. Era triste, sombrio. Assim que ele entrou, o animal estendido sobre um fofo tapete de palhas, gemeu. Henrique, aproximou-se e ajoelhando-se a sua frente, examinou-lhe o ventre, Henrique viu que a coisa não era senão para daí muitas horas. Tornou a voltar para a saleta, acompanhado pelo Azambuja.
         A refeição estava pronta em cima da mesa.
         __ Isso é cumida de bugre, num sei se o sinhô vai gostá.
         E, enquanto Henrique comia, o homem ia falando:
         __ É... Tenho aí uns milhará e um poco de arrois... Meu home tombém produis uns pote, da casca do caripé. Coisa de poca monta. Tudo pro consumo da gente mesmo. A gente vende um pro otro. Deis que o dinhero de pra gente vivê, pra que a gente há de pensá em cumulá? Tenho umas cabecinha de gado tombém... Tô fazeno o criame das anta, é novo, sô inté um dos primero, a dispois que eu sube que o pessoar do IBAMA, dá assistência... Aqui a gente tem tudo que percisa...
         No dia seguinte, ainda de madrugada, Henrique acudiu o animal, que tendo o filhote virado, sofria com dores atrozes, impedindo o nascimento.  não obstante toda a habilidade do professor, o filhote nasceu morto.
         Com que alívio Henrique vê afastar-se o local do sítio! vai silencioso. Em vão o prático faz esforços para entabular conversa. Tem o pensamento em Esthela. Arde do desejo de lhe contar suas peripécias.
         Mais tarde, param numa praia para acender fogo e almoçar. Sentados na areia, distraídos com um naco de cutia assada, os dois companheiros não notam a aproximação, lenta e traiçoeira, dos Anuamãs. Uma certeira paulada, desferida na direção das suas cabeças, fê-los perder a consciência, os dois corpos caíram para o lado. Da cabeça de Henrique, um fiozinho, um estreito filete avermelhado, escorria-lhe por entre os cabelos.
         Os índios Anuamãs, apesar de baixos e entroncados, eram rápidos, ferozes combatentes. O espírito vingativo, era o combustível para as suas lutas, a borduna, o arco e a flecha, complementavam agora, o uso alternado com os facões, foices e machados, tirados dos caboclos, lenheiros, seringueiros e ribeirinhos.
         Durante anos, os Anuamãs viveram internados no seio da floresta, nas áreas inexploradas do alto Purus. Com a constante tomada da floresta, pelos nordestinos, contrabandistas e principalmente pelos traficantes de cocaína, que por muitas vezes entraram em conflito com eles, foram sendo espremidos numa pequena área, oculta pelas montanhas. Mas a caça e a pesca, dentro do pequeno vale, é insuficiente para alimentar toda a aldeia. Com isso, saem para caçar e pescar, fora do vale, penetrando floresta a dentro. Daí resultaram os novos contatos com o branco. Agora, depois de mais de doze anos, enfrentaram-se novamente, brancos e Anuamãs. Eles haviam praticamente desaparecido, Sertanistas e pesquisadores do IBAMA  e da FUNAI, acreditavam que a tribo dos Anuamãs, tinha sido extinta. Mas novamente a natureza vem de encontro ao homem. Levanta-se contra ele, e prova que é mais forte, demonstra claramente que o seu poder de regeneração é maior, do que o poder de destruição do homem “Civilizado”.
         Quando Henrique recobra os sentidos, está preso a uma tora, fincada no meio da aldeia dos Anuamãs. Na primeira vez, em que ele fora prisioneiro dos Anuamãs, não teve oportunidade de visualizar a aldeia, tampouco durante a sua fuga alucinada, floresta a dentro. Agora, refeito da pancada, ele conseguia visualizar toda a paisagem que o rodeava.
         A sua frente, um grande circulo de choças, era cercado pela caiçara. Destacando-se dentre as outras, estava uma grande maloca, onde os Anuamãs viviam uns com os outros, na maior promiscuidade. Ao centro dessa aldeia, havia um grande terreiro, que pela constituição árida do solo, adivinhava-se que era utilizado para a realização dos rituais daquela gente.
         Por todos os lados, Henrique observava o cotidiano daquele rebanho de selvagens. Andavam todos, praticamente nus, as mulheres, com seus seios enormes e caídos, com grande mamilos negros, desfilavam desenvoltas, pelo pátio da aldeia. Os curumins barrigudos e ranhentos, corriam pra lá e pra cá, numa brincadeira estranha e divertida, porém desconhecida à Henrique. Os homens da aldeia, estavam quase sempre ocupados. Talhavam grandes bordunas, a arma preferida daqueles guerreiros. Imensos arcos e longas flechas, também faziam parte do arsenal militar daquele povo. As mulheres, perdidas no preparo do cauim. Produziam a bebida a partir da mandioca. Depois de raspar as cascas da raiz, quebravam-na em pequenos pedaços, que depois de mastigados, eram cuspidos em um grande taxo de madeira. Ali, a mandioca mastigada ficaria, até fermentar. Depois seria coada e servida aos índios, que se embebedariam num festim inimaginável.
         O movimento na aldeia era interminável, cada indivíduo tinha a sua tarefa a cumprir. Somente as crianças da aldeia, é que pareciam estar mesmo à vontade. Um grande número de curumins, nadava alegremente no rio que cortava a aldeia. Os barrigudinhos, usavam um grande barranco, para obter impulso, para os vertiginosos mergulhos, que davam. Era uma vida excitante aquela! pensava Henrique.
         Subitamente, um dos homens da tribo se aproximou de Henrique. Era um pouco mais alto que o comum, entre os homens da aldeia. Seu cabelo empastado no alto da cabeça, escorrido e oleoso, lembrava o macarrão que passou do ponto. Seu rosto escarificado com desenhos angulares, os adornos que adentravam pelos orifícios na pele, deixavam transparecer o orgulho que sentia, em meter medo a um outro homem. Sem que Henrique esperasse, o índio lhe dirigiu a palavra:
         __ Branco muito corajoso! Guambi viu!
         Henrique, apalermado com a situação, permaneceu perplexo por alguns instantes, então replicou:
         __ Porque me prendem novamente, que fiz a vocês?
         O índio com olhos estanhados, sente-se ultrajado com a indagação que Henrique lhe fizera.
         __ Como não saber? Índio sabe. Branco só qué oro. Só qué pedra valor... Mas índio não vai dá... Isso nóis qué dizê.
         __ Mas eu não quero o seu ouro, não quero nada de vocês... disse Henrique explicando-se. __ Onde está o outro homem branco, o Rodolfo?...
         __ Guambi num sabe. Guambi qué sabê o que branco faz na nossa terra?... Pro quê tá aqui?
         __ Não sei se posso te explicar, sou apenas um empregado, meu chefe é outro... obtemperou Henrique.
         __ Guambi qué cunhecê o chefe. exclamou exaltado.
         __ Está bem... disse Henrique, assustando-se com a reação de Guambí. __ Eu posso conseguir um encontro com vocês!
         __ Guambi num sabe confiá! O branco é traidô!
         __ Não eu! garantiu Henrique. __ Olhe aqui, tá vendo essa insígnia aqui? falou Henrique, apontando com o queixo, a divisa que tinha costurada à jaqueta. __ Isso é sinal de honra, entre os brancos.
         Guambi aproximou-se, desconfiado e olhou demoradamente para a insígnia que Henrique trazia no ombro, tocou-a com os grossos dedos... afastou-se e de repente a um sinal. Henrique estava livre. As amarras de embira que o prendiam foram cortadas, seus pulsos que se mantinham presos pela tira de embira, estavam doloridos. O sangue ali passava apertado. Depois de esfregar-lhes, Henrique quis saber o motivo de sua libertação:
         __ Porque me soltaram? perguntou preocupado.
         __ Guambí qué cunhecê o chefe. Você vai buscá, trais ele aqui, se traí a gente... a voz do índio partia ameaçadora. E ao final da frase, com um gesto de cabeça, ele apontou para uma das choças que tinham à frente. Na entrada da choupana, Henrique viu aparecer, a figura esquálida e sofrida, do amigo Rodolfo. O homem estava completamente acabado, seu corpo estava coberto apenas com uns fiapos, do que teriam sido suas roupas, por todo o seu corpo, se viam sinais de brutalidade. Hematomas espalhavam-se por todo o corpo, seu rosto, desfigurado, parecia rogar-lhe ajuda. Amparado por dois índios, ele exibiu um sofrido sorriso de esperança.
         Henrique quis correr em seu socorro, mas dois outros índios, o impediram, segurando-o também pelos braços, torcendo-os de encontro ao seu corpo.
         __ Ele viverá, se você voltar com seu chefe! disse Guambi, ameaçadoramente.
         __ Como posso ter certeza?
         __ Guambí falou...
         Diante da afirmativa do índio, Henrique não tinha outra alternativa senão: seguir às ordens do chefe. Em poucos minutos, uma pequena escolta, formada por guerreiros Anuamãs, descia o igarapé à caminho do Rio Purus. Henrique tentou saber dos índios, o que tinha acontecido com o caboclo que estava com ele, quando o pegaram, mas, infelizmente, nenhum dos índios que seguia com ele, conhecia a sua língua.
         Assim que a canoa entrou no Purus, os índios abandonaram Henrique a sua própria sorte. Dali em diante, até chegar na Reserva Itaúna, ele teria de remar sozinho. Por sorte estava descendo, acompanhando a correnteza. A canoa desce vagarosamente. Há no meio do rio grandes ilhas de verdura, que é preciso evitar, e múltiplos canais. Ilhas de todos os feitios e tamanhos. Bancos de cascalho e de areia. As horas escoavam-se agradavelmente. Henrique ria-se com a rudeza daquela gente. Teve pena do amigo Rodolfo, mas tinha certeza que logo, conseguiria resgatá-lo. O encontro solicitado por Guambí, poderia encerrar de vez com os trágicos acontecimentos da região. Ele acreditava cegamente, que Ricardo Falcão se empenharia em manter a paz entre a tribo dos Anuamãs e os brancos da região, não sabia como, mas...
         Dois dias depois, Ricardo Falcão aparece na Reserva do Itaúna, acompanhado pelo Coronel Amâncio e um pequeno pelotão de soldados, muito bem armados. Sentados na varanda da casa, Henrique, Amâncio e Ricardo, discutem a respeito do encontro que tivera no dia anterior. Todos estão excitados com a boa nova. Ricardo quer ouvir com detalhes a conversa que Henrique teve com o Guambí, parece não acreditar que aquilo tenha ocorrido de verdade. Despejando as cartas sobre a mesa, Henrique aguardava a decisão de Ricardo. Se concordasse no encontro, seguiriam naquele mesmo dia, caso contrário...
         __ Não creio que seja seguro Sr. Ricardo... entrecortou Amâncio. __ O Sr. se lembra o estado em que ficaram os corpos dos meus homens?!...
         __ Tudo bem Coronel, nós todos vimos, com tristeza é verdade, mas Guambí garantiu-nos segurança... Ele deseja conversar diretamente com o meu chefe. insistiu Henrique.
         __ Então dixe que eu vá. Diga-lhe que eu sou o seu chefe! insistiu Amâncio.
         __ Não, Guambi já conhece os homens do exército... Creio que o melhor que temos a fazer, é acompanhar o Sr. Ricardo, tive a liberdade de chamar o encarregado da FUNAI nesta região, ele também quer acompanhar a expedição...
         Ricardo Falcão, olhou com desconfiança a atitude que Henrique tomara, sem o seu consentimento, mas no fundo, deu-lhe razão. Um representante da FUNAI, naquele encontro, certamente demonstraria à Guambí a seriedade com que o caso estava sendo estudado. Ele não imaginava que para Guambí, a FUNAI nada mais era, do que mais um espoliador de seus recursos...
         Após horas de discussão, ficaram então acertados: Ricardo, Henrique e Amaral, o responsável da FUNAI, iriam ao encontro com Guambí. Partiram na manhã seguinte.
         Na altura do igarapé que leva à aldeia Anuamã, os guerreiros de Guambí tomaram de assalto a canoa que trazia os três ilustres visitantes. Henrique bradava aos companheiros, para que mantivessem a  cabeça baixa, como forma de respeito, desse modo, não seriam importunados pelos silvícolas. Em poucas horas, a canoa adentrava nos limites da aldeia. De longe os três visitantes avistaram a correria, homens, mulheres e crianças, corriam às margens do rio, para assistirem a chegada dos brancos. Guambí os aguardava num pequeno trapiche, construído de pau a pique, na orla do igarapé.
         Guambí recebeu o chefe branco, com honras de estado, sisudo, portando as pinturas e adornos de guerra, ele os encaminhou para a grande maloca, desejava conhecer as intenções do grande chefe branco. Henrique, por sua vez, estava preocupado com o Rodolfo. Da última vez que o vira, o pobre estava num estado deplorável. Enquanto o distinto grupo se dirigia para a grande maloca, ao centro, Henrique desviou-se e seguiu para a pequena choupana, que guardava o prisioneiro branco.
         Ao entrar na choupana, o espetáculo que se descortinara a sua frente era terrível: Rodolfo jazia no chão da barraca, completamente despido. Seu corpo contendo diversas marcas arroxeadas, tremia febrilmente, o suor lhe escorria em abundância. Preocupado com o estado de saúde do amigo, Henrique correu ao seu encontro ajoelhando-se ao seu lado. Subitamente uma outra figura aparece à porta da choça. É um jovem índio, que assustado com a presença de Henrique, afasta-se da porta dizendo:
         ­__ Branco doente, Uiranã sara ele!
         Instantes depois, aturdido, Henrique assiste a cena que se desenrola a sua frente: Após um intenso silêncio, Uiranã entra na choça. Vinha já alterada pelo efeito do cauim tomado em grandes doses. Empunhava pelo cabo um maracá de barro. Sua cara enrrugada, esquisita, meio fantástica, cruel, tinha fulgurações de cobre, que lhe emprestava os raios do sol, que penetravam pelas frinchas da barraca. Curvando-se, a índia ateou fogo à enorme quantidade de tauaris, charutos indígenas, que ali já se encontravam para esse mister. Em pouco não se podia quase respirar dentro da choça. Henrique tinha os olhos a arder, mas retinha-os o mais abertos possível, numa vontade infrene de não perder nada, de gravar tudo na memória. Após soltar o seu hálito quente no rosto do homem imóvel diante dela. A cerimônia do Peiuua, que tira dos corpos o mal aí alojado, Uiranã bateu as mãos.
         __ Canitara! exclamou, como se reclamasse algo.
         Logo, o rapaz que a tinha acompanhado se adiantou, estendendo-lhe o objeto pedido. Era um cocar de penas multicores que ela, com os braços erguidos em gesto imponente, colocou na cabeça. A seguir, encheu os pulsos de pulseiras coloridas, tomou novamente o maracá, levantando-o a altura da cabeça, e juntando os pés, estatelou o corpo como um soldado diante do seu rei. E da sinistra boca, inesperadamente, saiu um grito horrível, misto de uivo e silvo, que abalou os nervos de Henrique, que assistia a tudo, de um canto da barraca. E enquanto seus lábios proferiam palavras estranhas, invocando os caraúnas benéficos, seu corpo dançava a mais macabra, a mais exótica, a mais lúbrica das danças selvagens.
         Brilham os olhos de Henrique, numa curiosidade sem limites. Diante do enfermo a mulher se requebra, geme, urra, pula, alucina-se. Seu corpo parece partir-se em vários pedaços. Os olhos despedem faíscações aflitas, os braços traçam no ar linhas angulosas. Súbito, há um momento de intensa dramaticidade. Uiranã atira-se no chão, vencida, extenuada, rasga as vestes e luta contra si mesma, como em repentina paralisação dos membros. Cai e o suspiro que lhe sai do peito é como o eco de um trovão extinto. Nesse momento a cena atinge o seu ponto culminante. É a atuação. Apesar do desatino em que se encontra, parece atentar o ouvido a ruídos que ninguém ouve. “É que os bichos do fundo se estão comunicando com ela” disse-lhe Ricardo posteriormente. Henrique sacode o corpo, como a querer afastar a emoção que o invade. Que sorrir e não pode. Tem os olhos no monstro ali prostrado. Tem gotas de suor no rosto.
         __ Selvageria... ignorância... murmura-lhe uma voz interior.
         Mas a camisa está-lhe colada ao corpo, sua por todos os poros, sente-se mal. O índio que acompanha Uiranã toma-o pelo braço e senta-o a um canto. Está terminado o feitiço. Uiranã é retirada da choça exangue.
         Após alguns minutos, Henrique está completamente recuperado das intensas emoções que sentiu durante aquelas horas. Chega-se para junto do amigo moribundo e sente a sua respiração, está normal... seu pulso aparenta regularidade... o suor, que horas antes lhe lavavam o corpo, parece ter-se evaporado, a febre sumira por completo. Rodolfo dormia tranqüilamente.
         Impressionado, Henrique deixa a choça e segue para a grande maloca, quer saber em que pés andam, as negociações entre o Sr. Ricardo e o chefe Guambí. A entrada da grande maloca, encontram-se uma multidão de índios, entre eles, mulheres e crianças, todos aguardam também, com certa expectativa, os resultados da conversa entre os dois grandes chefes, Guambí e Ricardo. Henrique se aproxima e sob os olhares desconfiados dos selvagens, ele entra na grande maloca. O lugar é mais horrível ainda, do que a pequena choupana onde estivera até o momento. A fumaça que nubla o interior da grande cabana, sufoca-o de repente, provocando um acesso incontrolável de tosse, obrigando-o a deixar o ambiente, sem saber a quantas andam, os acordos. Senta-se do lado de fora, junto a um amontoado de lenha. A tarde esvaiu-se rapidamente e com ela, a noite cobriu a aldeia.
         Deitado sobre uma esteira, Henrique sente emoções incompreensíveis, faz esforços para relembrar de Esthela. É inútil, o rosto dela se esfuma. O sono também o invade, mas uma parte de seu ser que repele o esquecimento, que persiste em lembrar-se, que não quer dormir. Esforça-se por deixar aproximar-se o rosto de sua mulher que a fumaça dos tauaris esconde. Ouve o silvo da bruxa, ecoando na floresta cheia dos rumores noturnos. Quando está quase dormindo, volta-se de repente, com violência na esteira. Está suando. Não, não poderá dormir, bem sabe. Esthela! chama, quase sem voz. Sente que uma força poderosa o retém longe dela. Que precisa, talvez, libertar-se desses novos elos misteriosos. Mas poderá?... É como a embarcação que se afastou da terra. Agora é o domínio das águas, das forças novas. A margem é firme, mas está afastada. É preciso singrar... Seguirá. O corpo pesa-lhe. Cerram-se coisas dentro dele. Um apagamento... Uma invasão de sombras macias... Adormece.
         Na manhã seguinte, todos estão prontos para partir, Amâncio está preocupado com os seus homens, deixou ordens expressas de que, se não voltasse até a tarde seguinte, deveriam atacar e subjugar o inimigo. Tem pressa.
        


X



         A vida na Itaúna continuava, a rotina diária de Henrique e Esthela, jamais dispensava um pouco de aventura. A reserva lhes proporcionava dias maravilhosos e intensos.
         Certa noite, uma onça pintada tinha rondado as redondezas. Ramiro, para mostrar bravura a D. Esthela e o marido, saíra ao encalço da fera. E voltara, depois, abismado, contando o estranho quadro com que se deparara: a margem do igarapé a onça debruçada, procurava com os olhos os peixes incautos. Quando se aproximavam, traiçoeira virava-se e metia a ponta da cauda na água, como um anzól, que ficava batendo levemente, para que os peixes tomassem esse ruído pelo da queda de frutos caídos das árvores circundantes. E assim que um peixinho apontava, botando para fora do líquido o seu ávido focinho, a onça paf! acertava-lhe com a pata, atirando-o para a margem, onde  saboreava-o com vagar. Ramiro demorara-se a ver o bicho nessa estranha emboscada. Voltara emocionado.
         __ Danada da onça, até parecia gente, professor!... Eu nem tive coragem de rasgá ela na bala!
         Naquele dia, Henrique e os demais caboclos da Itaúna, divertiram-se a valer com as histórias de Ramiro. Ele era divertido, amigo para todas as horas, seria capaz de tirar-lhe a camisa de bom grado, porém a força, não tiravam-lhe nem um espirro.
         Henrique tinha aprendido a maioria das coisas que sabia, através do Ramiro. Era incrível, com que rapidez ele aprendia as coisas da terra. Em pouco, Ramiro já estava admirando as suas perícias.
         Nos dias de ócio, empregavam as suas horas na pesca. Henrique admirava a perícia do companheiro, que quando a quantidade de peixe era muita, os pegava à ponta do facão, dentro do igarapé. Preferia porém, aqueles momentos deliciosos, de solidão e silêncio, quando acompanhado de Esthela, observavam o igapó sumindo na seca, revelando seus tesouros, prateando-se à luz da lua, tantos eram os peixes que mostravam os seus dorsos na transparência das águas. Lutando contra as nuvens compactas de mosquitos que os envolviam.
         Ramiro, homem maduro, sofrido e criado naquela vida, ensinara-lhes que os peixes tem hora pra tudo. Amam-se, alimentam-se, põem ovos, bóiam, adormecem, saltam e emergem por vezes fora d’água, a horas determinadas. Conseguí-los com facilidade dependia de observação.
         Henrique lembrava-se  daquele dia em que pescando com o amigo, ao se esconderem sob uma planta rebeirinha, tinham-lhe caído em cima milhares de bolinhas microscópicas. Ramiro retivera-o com o braço. Não! Que não avançasse! Deixasse passar algum tempo. Era o poraquê que estava ali, e que com seu contato eletrizara a planta, por nela vislumbrar algum alimento de seu agrado.
         __ Não gosto de pescar com o timbó dizia-lhe o amigo. __ Já envenenei muito peixe de todo jeito, mas porém, eu prefiro a tarrafa. Já peguei peixe de todo jeito. Muito peixe boi, já cacei no rio com o meu jaticá, tanto nas cabeceiras, quanto no meio dos igarapés ou nas clareiras de matupá. Eu ficava imóvel, esperando que o danado do peixe aparecesse por cima da água. Quanto o bicho botava o focinho de fora, tá! Eu jogava o arpão, e ia pegar nele direitinho, e ele começava a correr. Eu tinha então que me agarrar na bóia com vontade, porque ele puxava que não era brinquedo, e era capaz de me levar com canoa e tudo. Diabo não era a luta com os peixes não! Diabo eram os mosquitos que resolvem descer pra cima da gente! E a gente não pode nem escorraça essas pragas, porque os peixes não podem perceber a nossa presença ali...
         __ Você aprendeu ligeiro e com habilidade!... dizia-lhe Ramiro.

         Na Itaúna Henrique tomou conhecimento do tratado firmado entre os índios Anuamãs e o IBAMA, com o apoio da FUNAI. Guambí e sua tribo, permaneceriam no vale, a área seria demarcada, mantendo o controle da terra, nas mãos dos Anuamãs. Quanto ao ouro, não havia sinais de uma nova jazida, as pedras, depois de analisadas, comprovou-se se tratar de perita, material muito parecido com o ouro, porém sem um grande valor comercial. A FUNAI agora, mantinha estreito convívio com a tribo, mantendo sempre um de seus representantes, em contato direto com Guambí.
         Rodolfo foi resgatado e a paz entre os Anuamãs e brancos foi restabelecida, por quanto tempo? Não saberei dizer...
        


XI


         Henrique seguia a picada estreita que o conduzia à Reserva do Itaúna. As vozes gementes dos surucuás melancólicos, o canto entusiástico dos maçaricos ao romper do sol, e os assobios trinados de milhares de outros pássaros perdidos na floresta, enchiam-lhe os ouvidos de uma vibração sonora, que o atordoava. Queria era chegar, chegar o quanto antes e quanto antes sair daquele labirinto de clorofila. Vinha como se fugisse. Sim, não queria lembrar-se, tinha vontade de deixar definitivamente para trás as cenas horrendas que acabara de viver, nessa noite inesquecível de sua vida... E pisava as folhas secas, quebrava arbustos, tinha a boca amarga, sedenta. Queria chegar. O Ramiro. Sim, falaria com o Ramiro. Mas como falar? Com que palavras? Como encontrar expressões adequadas, capazes de... Era difícil, sim! Impossível quase, relatar... E suas pernas caminhavam maquinalmente e seu cérebro girava em pensamentos desencontrados, que o cansavam, que o exauriam, que o alucinavam... Não se sentia mais um homem, era como um feixe de idéias que caminhasse. Um feixe de idéias, dolorosas, vivas candentes. E ia pela picada.
         O dia já estava claro, em toda a sua plenitude, e nenhum ruído se ouvia na Itaúna, quando ele aí chegou. Todos dormiam o sono pesado dos dias seguintes. Já por toda parte o sol tingia de vermelho as tonalidades ainda indecisas da manhã.
         A sua chegada, porém, à porta do barracão surgiu o vulto de homem, era o Ramiro.
         __ Ramiro, venha cá homem, tenho de lhe falar. disse-lhe Henrique.
         __ O que há homem? perguntou o amigo, vendo a sua fisionomia alterada, o olhar fatigado, as pálpebras pisadas, todo o acabrunhamento que havia, visível, em seu ser. __ O que houve? Onde estava?
         __ Venha cá, preciso contar-lhe...
         E afastaram-se rumo a margem, ao porto, onde a solidão punha em tudo uma nota infinita de serenidade.
         __ Imagine que noite horrível eu passei... que horrores testemunhei e que horas amargas que acabo de viver!...
         __ Vamos logo homem!... desembuche!
         __ Pois calcule que ontem à noite, saímos eu e o Pablo a fim de fisgarmos algumas traíras, no igarapé de baixo.  Depois de tomarmos uns goles, notei que estávamos pra lá de Bagdá, resolvemos então nos sentar ao barranco.
         __ Sei... sei... continue!
         __ Pois ali ficamos um bom tempo sentados e ele continuou a beber. virou, na minha frente, uma garrafa de cachaça quase inteira. Quando vi que ele estava embriagado, quis trazê-lo de volta para casa, mas ele recusou, tão obstinadamente, que eu fui obrigado a deixá-lo sozinho. Na verdade, não tinha intenção de abandoná-lo, mas resolvi que seria melhor eu dar um tempo, saí a caminhar. Fingi que vinha embora, para ver se ele me seguia... Quando porém, já tinha dado uns cinqüenta passos, ouvi gritos pavorosos. Voltei correndo, para ver o que tinha acontecido. E... e... meu amigo! disse levando a mão ao rosto. __ Foi horrível o que presenciei!...
         __ Que foi homem?... Conta logo... Tá me deixando nervoso! exclamou o outro impaciente.
         __ Pablo tinha caído no igarapé e estava sendo devorado pelas piranhas. Dava gritos quando sua boca conseguia alcançar a tona da água, mas já o corpo todo estava sendo destroçado, todo... todo... Eu via de vez em quando um pedaço de mão ou de pé, boiando... Mas logo vinham outras piranhas com seus dentes afiados  e devoravam o pedaço que sobrara. Avançaram nele de tal maneira, tão desatinadas pelo cheiro do sangue na água, e eram tantas, que em poucos minutos destruíram-no inteirinho. Eu estava como doido, olhando tudo aquilo, sem nada poder fazer... Daí a pouco, só sangue e os restos de sua roupa, desfeita, é que boiavam na superfície da água rubra... Pablo sumira todo. Fora devorado... Seus sapatos também boiavam. Foi horrível!... horrível!... Você não imagina!...
         Ramiro estava boquiaberto, sem nada poder dizer.
         __ Meu Deus, o que será da mulher dele?!... Pobre coitado! disse, ao fim de algum tempo, Henrique ainda pode ver em seu rosto, uma grossa lágrima que escorria, deixando um rastro salgado, atrás de si.
         Henrique, depois do sucedido, ficou muito doente, Esthela à sua cabeceira, tratou-o com muito carinho. Em seus delírios, o nome de Pablo surgia a cada momento. Os fundos capoeirões, as grimpas e as coivaras, as redes perdidas nos campos, as terras-firmes que em breve, na cheia a água procuraria, em vão, alcançar, as corolas de plantas venenosas de que tomba inesperadamente sobre a cabeça dos caboclos o mordente cauixi, as planícies superlotadas de árvores opulentas e brutais, as mulheres curvadas nos tabacais cobertos de brotos tenros, as roças de maniva, as mandiocas cevando na água, raladas e depois enxutas para cozinhar, as trovoadas repentinas, Guambí o grande chefe Anuamã, os pios dos pássaros assanhados, o corpo despedaçado de Elias, a onça que matou o pobre Miguel, os algodoeiros enevoados, os caripés tristonhos, despidos de frutos e flores, e Pablo... as cobras enroscadas e os tamanduás traiçoeiros, tudo isso perpassava pelo seu espírito, numa renovação de momentos já vividos, e, Pablo. De impressões inapagáveis, cansando-o pela sua justaposição enervante e repetida. Vivia absorto, como em contemplações interiores, tiritando de frio quando estava empapado de suor, ardendo em febre, delirando.
         Por um ou outro gaiola, chegavam cartas, cartões postais de sua família no Paraná, sempre a indagar o dia da sua volta...
         Pelos meados de outubro, tendo melhorado o seu estado de saúde, resolveu seguir de férias, para o Paraná.
         E um dia Henrique chegou num táxi à casa de sua mãe em Araucária. D. Vitória como sempre, estava na lida da casa, quando Kelly, sua irmã, apareceu atarantada, gritando quase, de emoção:
         __ Imagine só Mamãe, quem é que está aí, chegando num táxi!... O Henrique, meu irmão!
         __ Henrique?! Será possível?
         __ É ele mesmo! E, está com a Esthela, vieram os dois...
         Henrique e Esthela permaneceram por trinta dias no Paraná, quinze dias, em casa dos pais de Esthela, então, apaziguadas as saudades, retornaram a Itaúna. No dia da partida, Henrique deixou uma carta aos parentes, que dizia mais ou menos assim:
         Querida Mamãe... Queridos amigos...
         Não queria permanecer na minha terra natal como me encontro. nem as suas palavras bondosas, nem os seus afetos constantes e dedicados conseguiriam privar-me desse terrível destino. Sou um homem da terra, não da humanidade. Detesto os homens, os seres humanos. Adoro o solo que eles pisam, sonho com a grandeza da terra, com algo que não lhes posso explicar, porque vocês não compreenderiam. Meu avô revive em mim, poderosamente. devo-me a minha terra angustiada, que me chama e me reclama. Fiquei para sempre acorrentado ao feitiço que dela se desprende, desde que vivi aqueles dias formidáveis dos primeiros tempos na Amazônia. Sou livre por natureza, e qualquer elo que me prenda, me pesa horrivelmente. É que as sementes muitas vezes, se desenvolvem em plantas inesperadas.
         Jamais poderei me afastar dessa terra que me castiga, dessa terra que eu amo e que me oferece de braços abertos, seus mistérios à desvendar...
         Pela última vez ia vendo as ruas e os edifícios de Curitiba no Paraná. Desejava, realmente, que fosse pela última vez. Segurava a mão de Esthela na sua, cerrando-a quando lhe apertava o desejo de chorar.
         No aeroporto, as duas famílias, os Portes e os Silva, aguardavam, a tristeza era geral, tanto para uma, quanto para outra família. Saber que seus filhos estavam partindo novamente para os confins da Amazônia, entristecia-os.
         A voz nos alto-falantes do aeroporto anunciavam o embarque do vôo 327 para Manaus. D. Marli, inundada de lágrimas, os ombros sacudidos num choro ininterrupto, abraçou-se com a filha.
         __ Esthela meu bem!... Adeus!... Pobrezinha!...
         E com um gesto de raiva impotente:
         __ Aquele louco!...
         Leoncio, o pai de Esthela, nada dizia, os olhos baixos, segurando o chapéu com a mão tremula.
         D. Vitória soluçava, acenando com a mão para o filho e sua esposa.
         Em breve o avião decolava. Henrique segurou a mão de Esthela. Precisava desse contato, para ver desaparecer sua cidade natal.
         Henrique levou o lenço à boca. Em seu cérebro deslizavam idéias rápidas, rápidas, imediatamente substituídas por outras, contraditórias, em violentos e súbitos contrastes. A lembrança de Rodolfo riscava o seu pensamento como uma fagulha. Pablo sumia-se nele, como um fogo de artifício desmanchado na espessura da noite. Tudo mais era confusão.
         Esthela chorava monotonamente:
         __ Quando verei mamãe?... E papai?... e o resto?...
         Henrique consolou-a, abraçando carinhosamente o seu corpo, transmitindo-lhe todo o calor que possuía...
         Depois, veio-lhe de golpe, à memória, o sorriso de sua mãe.
         Voltou o rosto para a esposa. Ela tinha pousado a cabeça no travesseiro, adormecera. As lágrimas já haviam se evaporado. Esteve um instante contemplando a sua figura graciosa. Ficou um grande momento assim. Depois, insensivelmente, em seus lábios se desenhou um sorriso. O sorriso de sua mãe...

Fim